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<DOCNO>PUBLICO-19950525-098</DOCNO>
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<DATE>19950525</DATE>
<CATEGORY>Diversos</CATEGORY>
<AUTHOR>RB</AUTHOR>
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A quem se dirigem os partidos?
Augusto Santos Silva
Os partidos não devem ter o monopólio da representação política dos cidadãos. Mas são, até ver, uma condição indispensável da existência de uma democracia, porque constituem um instrumento de representação dos cidadãos, de mediação da sua acção e de expressão de interesses diversificados e conflituais. Em tempos tão marcados pela suspeição populista sobre toda a classe política, pelo messianismo e pela tentação referendária, convém lembrar a utilidade social dos partidos e tentar perceber a sua lógica de funcionamento.
Uma das maneiras de percebê-la é responder a esta pergunta: a quem se dirigem os partidos? Quais são os seus interlocutores reais e quais são os interlocutores pretendidos, ou imaginados, aqueles a quem as lideranças julgam poder dirigir-se com mais eficácia? Eis uma pergunta reveladora, designadamente na conjuntura pré-eleitoral portuguesa.
É, por exemplo, relativamente fácil responder-lhe, no que toca às organizações da chamada extrema-esquerda, ou da esquerda radical «não-alinhada»: falam, por regra, para si próprias. Quando, uma vez por outra, aceitam que existe gente para lá do seu microcosmos, alvejam os militantes que supõem mais politizados da esquerda clássica. Por isso, a doutrina e a acção que propõem parecem perfeitamente coerentes quando avaliadas de um ponto de vista interno, e singularmente desajustadas quando avaliadas a partir de uma sociedade cuja turbulência, complexidade e incoerência não é redutível à linearidade de uma fé exemplar. Prevalece um espírito sectário, fazendo com que, em nome de uma pureza imaginária, nenhuma aproximação unitária resulte duradouramente, dentro do microcosmos radical. E o máximo que este consegue obter, de eficácia externa, é roer algumas franjas dos partidos de esquerda -- sendo, aliás, esse o efeito mais desejado e gratificante.
Contudo, precisamos de olhares radicais e descomprometidos sobre factos e causas que escapam, quase por natureza, aos partidos de sistema -- ou que implicam anos e anos de questionação crítica para serem incorporados por eles. Precisamos, portanto, que o esforço de renovação que, em Portugal, tem sido recentemente protagonizado pela Política XXI se concretize. Da minha parte, gostaria apenas de recordar o que quer dizer radical: é ir às raízes das questões, e ter em conta todas as variáveis, e fazer propostas, mesmo que utópicas, que lhes respondam. O hipercriticismo erigido em norma de radical pouco tem.
O lugar e a dignidade do PC na vida política portuguesa saem reforçados de uma interrogação como a que proponho. Ele é o partido que mais consistentemente se dirige aos grupos penalizados e excluídos pela modernização sem dimensão social e, em particular, aos perdedores da litoralização, do fontismo cavaquista e da globalização da economia. Não deixa também de ser verdade, porém, que, no modo como lhes fala e deles fala, há, por um lado, um fechamento que reforça a guetização de que já sofrem e os reduz à postura de protesto (contribuindo, assim, para uma indistinção que leva a periódicas transferências directas do voto comunista para a direita populista); e há, por outro lado, uma obsessão autoritária na defesa do monopólio da representação dos dominados, que peturba também as possibilidades de construir alianças políticas consistentes para melhoria da sua situação social.
O perigo da deriva populista do actual PP vê-se bem. O PP cada vez mais imagina, como interlocutor, o povo da ordem e da tradição que o salazarismo havia cultivado. Camponeses e pescadores imaginariamente espoliados pela Europa cosmopolita e vendidos por políticos imorais, existem poucos. Veremos, em Outubro, quem e quantos são os receptores reais desta mensagem. Mas a capacidade de exercer uma espécie de chantagem ideológica sobre os partidos de sistema é impressionante -- e aí está, creio, o seu mais preocupante resultado.
Infelizmente, a democracia portuguesa, tendo quatro partidos parlamentares, está reduzida a dois partidos de sistema. Isso traz um acréscimo de dramatismo à pugna eleitoral, porque qualquer dos dois possíveis vencedores terá grandes dificuldades de gerar acordos parlamentares consistentes e precisa de forçar a maioria absoluta, ou um resultado muito perto dela.
Sendo partidos de poder, PS e PSD dirigem-se, em teoria, a um largo espectro social. Para ganharem, devem concitar apoios em várias classes e múltiplos interesses. Têm militantes. Mas vivemos tempos de celebração de lideranças, pouco favoráveis ao estímulo da participação efectiva dos militantes. Nenhum dos dois partidos desenvolve, hoje, uma cultura de participação activa dos seus filiados, em matéria programática e doutrinal. A ficção da rebeldia das bases social-democratas é, na realidade, uma história específica de emoção populista.
Depois, as posições ocupadas produzem condicionamentos importantes. O limite do PSD, enquanto actual maioria, é o de tender a falar, tipicamente, para a sua própria clientela, a rede de poderes que construiu, colonizando o Estado. O risco visível do PS, enquanto oposição à beira da vitória, é o de federar todos os interesses.
Isto não quer dizer que o PS e o PSD se não distingam também pelo tipo de interlocutor social com que comunicam. O PSD cavaquista falou para um país que se julgava em trajectória ascendente, pronto a usar de expedientes e manhas para conseguir no mais curto prazo sacar dividendos da integração europeia, da estabilização política e do crescimento económico. Falou para uma vasta massa de gente ao mesmo tempo carenciada e dependente, sem tradição nem força reivindicativa: reformados, pensionistas, sobretudo. Daqui resultou a sua identidade política específica, que não é de partido liberal, mas de um centro-direita de forte componente social, presumindo-se, por tê-la, depositário único do «interesse nacional». Sem dinheiro fácil, este PSD desorienta-se.
O PS oscila. Implantou-se naquele país em que o rural e o urbano se mesclam, os operários são agricultores e as classes populares pouco politizadas. Mas foi conquistando eleitorado urbano, quer através do discurso modernista, mais político do que ideológico, encarnado por Fernando Gomes, quer através do discurso solidarista, mais ético do que político, protagonizado por Sampaio e, em parte, por Guterres. A sua acção tem, portanto, de combinar alguma aproximação popular e alguma renovação qualificante: combinação custosa e difícil, que o arrastamento de certos mandarinatos prejudica. Mas salta à vista que o PS já retirou ao PSD o trunfo da primeira maioria absoluta de Cavaco Silva: tem consigo a elite técnica e intelectual.
Agora: não basta aos partidos equilibrarem a relação com as respectivas bases de apoio com o apelo global ao eleitorado como um todo. A comunicação política é cada vez mais transmitida, codificada e descodificada pelos «media», cuja actuação obedece a uma lógica específica. A tentação corrente é centrar o discurso político nos «media», tornando-os virtualmente os únicos destinatários da retórica partidária. Com riscos evidentes de colonização recíproca. Quero crer que quem souber evitá-los, recusando ficar refém de sondagens, líderes de opinião e vedetas televisivas, ganhará, ao contrário das aparências, vantagem para Outubro.
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