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<DOCNO>PUBLICO-19950529-110</DOCNO>
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<DATE>19950529</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>IC</AUTHOR>
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Um dia de correio literário
Natalie quer ser escritora...
Segunda-feira, 1 de Maio de 1995. Natalie colocou uma mensagem na rede informática que foi parar ao endereço electrónico de todos os assinantes da lista de correio na Internet que dá pelo nome de «Escritores» (Writers). Natalie é também assinante. A lista destina-se a quem queira pertencer a um grupo em que se fale sobre «escrever», «publicar» e se discuta «valores literários».
A «Escritores» é também para os que querem escrever sobre os Óscares, sobre as lancheiras que tinham em miúdos, sobre o modo como os gatos untados com manteiga desafiam a lei da gravidade. Enfim, pode ali escrever-se sobre tudo. Esta é, definitivamente, a lista onde não se deve perguntar «O que é que isto tem a ver com escrever?», conforme se explica na mensagem electrónica de apresentação do grupo.
«Olá a todos: sou a novata que vos mandou uma mensagem a explicar que estava a passar um mau bocado com a morte do meu primo. Estou finalmente a conseguir ultrapassar esse período e até mandei um poema sem título para a `Escritores' sobre os meus `céus negros' e o facto de estar à procura de dias mais radiosos. Mas as nuvens ainda andam por cima de mim», escrevia Natalie no Primeiro de Maio.
«(...) Acordei na passada sexta-feira com uma paralisia na minha mão esquerda. Quando, às 9h, me sentei ao computador para trabalhar, verifiquei que tinha de forçar os dedos da mão esquerda para obedecerem às minhas ordens (...)», continuava Natalie, que é dactilógrafa e tem o sonho de vir a ser uma escritora. Logo que descobriu que não conseguia mexer a mão, foi ao médico. No dia em que mandou a mensagem ainda estava à espera dos resultados.
«Sobrevivi a muitas coisas nestes meus mais de 39 anos de vida -- este é o limite de idade que eu aceito dizer no ciberespaço. (...) Tendo conseguido chegar até aqui, tenho de acreditar que, seja isto o que for, o meu sonho de trabalhar a partir do computador em casa e o meu sonho de me tornar uma escritora (...) não me irá fugir.»
Emily, que estava atenta ao correio, apesar do tráfego nesta lista ser enorme -- se se ficar dois dias sem ir buscar mensagens à caixa de correio virtual, podem juntar-se lá à espera 279 mensagens! --, respondeu a Natalie: «Sei que é assustador o que te aconteceu esta manhã. Eu costumava ter ataques de pânico e de ansiedade que se manifestavam em sintomas físicos. (...) Desejo-te as melhoras. Emily.»
No mesmo dia discutia-se na «Escritores» o conceito de assassínio e falava-se sobre os diários de Etty Hillesum, uma judia que viveu em Amesterdão e foi enviada para Auschwitz. Outro dos assuntos era o uso de expressões do dia-a-dia («popular culture») na poesia e na ficção. Se se deviam utilizar ou não e em que situações. Carol analisava o recurso a produtos (marcas como Coca-Cola, Cheer, etc.) e expressões datadas. Dava o exemplo de romances dos anos 70, em pleno movimento feminista, em que aparecem expressões como «Claro que ele pensava que eu não era suficientemente forte para abrir a porta sozinha».
Andrew fazia uma lista do seu «Canon Fodder» -- o seu cânone literário. É uma brincadeira de palavras com o jogo Cannon-Fodder (carne para canhão). Aí incluía, entre outros, as obras «Crime e Castigo» (ed. Europa-América) e «Os Irmãos Karamozov», de Dostoievski, «O Poder e a Glória», de Graham Greene, «Jazz» e «Amada» (ed. port. Difusão Cultural) de Tony Morrison. Havia uma mensagem destinada a todos. Era de Renay.
Ele tinha instalado a polémica entre os «escritores» da lista com uma mensagem agressiva e de indignação. Em causa estava um poema da sua autoria, que alguém teria colocado na «Escritores» sem a sua autorização. Esta era a sua segunda mensagem à lista, em que voltava a explicar a sua posição.
Um inglês, a viver há 12 anos na Califórnia, punha um anúncio sobre a sua página na World Wide Web (hipertexto que permite conjugar texto, imagens e sons). Ali colocou os seus escritos de poesia, ensaios, não-ficção e «short stories». Qualquer pessoa pode ir até lá e ver (o endereço é «http:www.hooked.net/users/Jalsop»). E neste 1 de Maio, pela primeira vez desde há alguns dias, Al-Ghassani não deixava uma mensagem com um daqueles seus poemas intermináveis.
Isabel Coutinho
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