<DOC>
<DOCNO>PUBLICO-19950531-060</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950531-060</DOCID>
<DATE>19950531</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
<AUTHOR>JH</AUTHOR>
<TEXT>
Cécile Kayizebwa, vedeta da canção, em visita a Portugal
«Os ruandeses são pacíficos»
Jorge Heitor
Cécile Kayizebwa, assistente social transformada em grande vedeta da canção em língua ruandesa, apesar de se ter naturalizado belga, esteve nos últimos dias em Portugal, a fim de recordar que o seu povo é antiquíssimo e no essencial pacífico. Por isso, não acredita que se repita uma catástrofe semelhante à do ano passado.
«O que sobretudo me interessa é a afirmação da nossa língua, o kinyarwanda, da nossa música e do nosso país. Não canto só por cantar, por uma realização pessoal, mas sim para defender a cultura ruandesa», disse ontem ao PÚBLICO a cantora Cécile Kayizebwa, que tem 48 anos e desde 1974 vive em Bruxelas, onde se naturalizou belga.
«Primeiro era assistente social e trabalhava em hospitais, mas depois comecei a cantar, gravei discos e compreendi que me poderia servir da voz para chamar a atenção para a existência de um povo já com muitos séculos de existência. Não nascemos ontem, com a chegada dos alemães, dos belgas e dos franceses ao interior da África. Já lá estávamos há muitos séculos; e as nossas guerras de antigamente eram com outros povos da região, não entre nós», explicou Cécile, que em dias anteriores tinha dado espectáculos no Seixal e em Lisboa.
«Somos um povo pacífico, com as nossas classes sociais. A cada um cabe a sua tarefa, como em todo o lado; mas temos uma só língua, uma só cultura, que me empenho em estudar e em divulgar», insistiu a artista, que pertence à camada populacional tutsi, minoritária e a partir de 1959 vítima de perseguições, depois de durante alguns séculos haver detido o poder.
«Este ódio
incrível»
«Este ódio incrível, particularmente visível no ano passado, é algo que nunca houvera, antes da Conferência de Berlim [1884-1885] e da chegada de alguns alemães à nossa região, onde precederam os belgas. O nosso povo é pacífico, repito, e nada disto se repetirá, com esta intensidade; particularmente se outros países não ajudarem os extremistas a regressar ao terreno», afirmou Cécile Kayizebwa, vedeta socialmente empenhada, na linha de uma Melina Mercouri ou de uma Miriam Makeba.
«Kigali, onde há pouco passei um mês, é agora uma cidade tranquila. As cicatrizes do genocídio de 1994 vão estar patentes durante muito tempo. Mas o que é preciso agora é que a França, a Bélgica, o Zaire e o Quénia não ajudem os militares e as milícias do antigo regime a regressar, numa onda de vingança contra a derrota sofrida», disse-nos a artista, cujos espectáculos a têm levado a solo francês, alemão, holandês e ugandês, entre outras paragens.
«O Zaire apoia indubitavelmente as forças extremistas que foram responsáveis pelo genocídio, perderam a guerra e depois para ali se retiraram, enquanto no Quénia vive a viúva do antigo Presidente Juvénal Habyarimana», declarou a entrevistada, corroborando assim algumas das afirmações feitas nos últimos dias pela organização internacional Human Rights Watch.
Uma tradição
multisecular
«Há muito trabalho cultural ainda a fazer, para que o mundo compreenda como nós, os ruandeses, somos um povo muito antigo, com muitos séculos de História. Vou proceder à recolha de mais canções tradicionais e cantarei sempre em kyniarwanda, não em francês ou em qualquer outra língua», prosseguiu Cécile, que tem quatro filhos e é extremamente orgulhosa de uma pátria tão antiga quanto a portuguesa.
Na História da África Negra, do burkinabe Joseph Ki-Zerbo, menciona-se a existência de listas de soberanos do Ruanda que começam na transição do século XI para o XII, aproximadamente na altura em que -- cá muito ao longe -- Henrique de Borgonha e sua mulher, Dona Teresa, eram encarregados pelo rei de Leão, Afonso VI, de reger o Condado Portucalense, entre Douro e Minho.
É isso mesmo o que pessoas como Cécile Kayizebwa nos pretendem agora dizer. O Ruanda, como entidade política e linguística, já lá estava bem firme, no interior da África Negra, quando os europeus começaram a desvendar os sertões e a aproximar-se dos Grandes Lagos. O Ruanda quer continuar a existir, tal como o vizinho Burundi, de idêntica composição social, mesmo quando algumas vozes começam a alvitrar se não seria melhor ter um país só para hutus e outro só para tutsis.
Afinal de contas, tendo sido criada entre os tutsis, o estrato social outrora mais favorecido, Cécile não o anda a proclamar aos quatro ventos. Apenas reconhece isso quando a interrogam sobre tal. E o que ela, «cantando, espalha por toda a parte», é a existência de um povo ruandês, que pede para o deixarem voltar a ser pacífico.
</TEXT>
</DOC>