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<DOCNO>PUBLICO-19950602-005</DOCNO>
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<DATE>19950602</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>IC</AUTHOR>
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John Cale em Lisboa para acompanhar ao vivo «The Unknown»
A Europa sem braços
Fernando Magalhães
O cinismo é, para John Cale, a característica que mais o impressiona em «The Unknown» («O Homem sem Braços»), obra-prima do cinema mudo realizada em 1927 por Tod Browning, para a qual compôs uma partitura. «Tirei partido desse cinismo», disse o antigo elemento dos Velvet Underground em conferência de imprensa dada ontem logo após a sua chegada ao aeroporto de Lisboa.
A ideia para John Cale compor e tocar ao vivo durante a projecção de «The Unknown», surgiu a partir de uma encomenda que lhe foi feita pela organização das «Jornadas do Cinema Mudo» realizadas em Pordenone. Uma ilustração sonora, em simultâneo com as imagens, para os amores cruéis entre Nanon e Malabar, com um circo por cenário, um espectáculo para ser visto e ouvido hoje às 22h no Cinema Tivoli, nos «Mistérios de Lisboa», iniciativa da Associação Cultural Saldanha com o patrocínio da Expo 98.
«The Unknown», a «banda-sonora», alterna a linguagem electrónica dos sintetizadores, «indicada para pôr em relevo o lado sobrenatural da música», com o piano e gravações de arquivo de vozes como as de Ezra Pound, T. S. Elliott e Winston Churchill, ou um excerto, a que chama «The hypnotist», um discurso, «numa voz muito calmante», com «conselhos às pessoas que sofrem de asma».
Cale enfrentou o desafio que é dar uma nova coloração sonora a um clássico do cinema, reconhecendo que, neste caso, pela sua antiguidade, «foi preciso ter muito cuidado». «Não é a mesma coisa», disse, que «fazer uma digressão rock'n' roll». «Uma vez começada, não se pode parar a música», disse ainda John Cale, referindo-se ao modo como trabalhou na partitura para a obra de Tod Browning que, de resto, constituirá a próxima edição discográfica do autor que no ano passado assinou «Last Day on Earth», de parceria com Bob Neuwirth.
«É a história de um circo, uma alegoria sobre a Europa entre as duas guerras, e das deslocações das suas populações. Na minha juventude, no País de Gales, sempre achei os filmes passados em circos muito deprimentes. Tive sempre a ideia que as pessoas do circo não tinham uma verdadeira casa, que andavam sempre à deriva. Num circo cada um desempenha um papel determinado, de padre ou de polícia. No filme é como se não houvesse nenhuma lei. O cinismo da história está na maneira como a credulidade é levada ao extremo. É difícil acreditar que alguém possa pensar como a personagem desempenhada por Lon Chaney [Malabar, o homem dos músculos que se faz voluntariamente amputar os dois braços por amor de Nanon/Gloria Swanson, por esta não suportar que algum homem a tocasse]. Há uma sensação de claustrofobia no desenrolar da acção à qual a música não consegue fugir».
Sobre a sua antiga companheira nos Velvet Underground, Nico, a cantora alemã presente no seminal «The Velvet Underground & Nico» e com a qual colaborou em vários dos seus discos a solo («The Marble Index», «Desertshore», «The End...») Cale referiu a sua «personalidade metódica, enquanto actriz», a aprendizagem no Actor's Studio e os ensinamentos que lhe foram ministrados por Elia Kazan. «Vivia de acordo com o seu próprio relógio, o que fez sempre até ao fim da sua vida. O seu sentido de `timing' era imaculado. E perturbante!».
Nico era a actriz emblemática dos filmes de Philippe Garrel, o qual costumava dizer que fazia filmes «para não se suicidar»: «A Cicatriz Interior», «Athanor» e «O Berço de Cristal». Os três serão exibidos no cinema Monumental, integrados na programação dos «Mistérios de Lisboa». John Cale, por seu lado, fez a música de «La Naissance de l' Amour», deste mesmo cineasta, e mais recentemente «Paris s' Éveille», de Olivier Assayas, e «N' Oublie pas que tu vas Mourir», de Xavier Beauvois, vencedor do Prémio do Júri no Festival de Cannes deste ano.
No Tivoli teremos um John Cale «desconhecido». A música do cinismo e da crueldade.
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