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<DOCNO>PUBLICO-19950616-139</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950616-139</DOCID>
<DATE>19950616</DATE>
<CATEGORY>Cien_Tecn_Educ</CATEGORY>
<AUTHOR>JVM</AUTHOR>
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Conferência apresentada na Bienal de Cascais (parte II)
A utopia como base da sobrevivência
Jaron Lanier
O mundo físico é maravilhoso, adoro-o, adoro a natureza, adoro os corpos das pessoas, adoro todas estas coisas. No entanto, é muito frustrante que o mundo seja mais poderoso do que eu, é muito frustrante que não possamos reconstruir instantaneamente o mundo da nossa imaginação, sem esforço, tal e qual como os nossos sonhos. É muito frustrante. A RV é o único tipo de realidade que pode ser partilhada, como o mundo físico, mas que é potencialmente tão flexível como o mundo interno da imaginação. Tem ambas as qualidades de uma só vez. É aqui que começa a magia, é por isso que as crianças ficam tão fascinadas com ela.
Há dois tipos de luvas de realidade virtual (RV). Há as luvas comuns, simples e baratas, que apenas indicam ao computador onde está a mão. E depois há as mais caras, que têm elementos robóticos capazes de exercer pressão sobre os dedos e que não permitem que a mão passe através dos objectos virtuais. Estas luvas são bastante raras, muito dispendiosas e experimentais.
Claro que me podem perguntar: «Como é possível sintetizar a realidade se as mãos podem atravessar objectos?» É tudo fruto da ilusão. Uma experiência interessante consiste em pôr alguém numa sala virtual, dar-lhe uma bonita secretária e pedir-lhe que bata com a mão no tampo da secretária. Ao executar o gesto, a pessoa vê uma linda sombra virtual projectar-se sobre a secretária enquanto a mão desce e, quando «bate» no tampo da secretária, ouve um belo som -- e a pessoa suspende logo o gesto, mesmo que não haja secretária, pois o seu cérebro acredita que deve parar. Mas, mais uma vez, se a prevenirmos acerca da experiência, a mão atravessará o tampo, porque a pessoa estará então demasiado ciente do que se passa na realidade para aceitar a ilusão. Tem que se deixar a ilusão instalar-se.
O que eu acabei de descrever é apenas a roupagem básica da RV, mas há dois elementos essenciais que tornam a RV importante, que vão mais longe que o uso destas vestimentas. O primeiro é a combinação da RV com as redes de telecomunicações, podendo-se ter mais do que uma pessoa ao mesmo tempo dentro de um mundo virtual, a interagir umas com as outras num mundo que não existe. É uma experiência muito profunda. O meu laboratório foi o primeiro a fazê-lo e foi um acontecimento extraordinário. No plano filosófico, isto é uma coisa completamente nova, pois a RV é a primeira realidade objectiva a surgir depois do mundo físico.
A primeira segunda realidade
A RV permite a relação entre duas pessoas exactamente do mesmo modo que o mundo real. Claro que tem propriedades que são diferentes das do mundo real, que tem uma qualidade inferior, mas é também mais flexível. Estas diferenças são muito interessantes.
A segunda característica interessante consiste em se poder decidir qual é o corpo que se vai usar. Numa primeira abordagem, podemos escolher ter um corpo que se assemelhe ao nosso corpo físico. É a opção mais óbvia e claro que isso pode ser feito -- não de modo perfeito mas com uma boa aproximação.
Nos primeiros tempos de investigação sobre a RV, tive uma experiência muito interessante, devida a um «bug» no programa. Quando pus o capacete, olhei para a minha mão e vi que ela estava enorme, ali à minha frente, e, quando mexi os meus dedos, acabei dentro dos meus dedos. Foi uma experiência muito estranha. O que era ainda mais estranho é que eu podia controlar a minha mão com a mesma facilidade de sempre, apesar de ela ser tão grande, e podia agarrar coisas na mesma. Era uma capacidade muito estranha e muito surpreendente, e comecei a brincar com aquilo, fiz uma série de experiências. Perguntava-me que corpos estranhos eu poderia dar às pessoas e que efeito é que isso teria. E se transformasse alguém numa girafa? E se alguém se transformasse numa lula?
Descobrimos, assim, que havia uma capacidade humana de controlar eficazmente corpos alternativos; vimos que as pessoas podiam adaptar-se facilmente a controlar membros ligados a regiões do corpo diferentes das habituais. É uma capacidade inesperada e surpreendente -- e um dos maiores trunfos para a criatividade na RV. De facto, pode-se até conjugar diferentes corpos. Algo bastante romântico é trocar um olhar com alguém, trocar «realmente» de olhar. Assim, eu posso ver com o olhar do outro e ele pode ver com o meu. No início, é muito difícil de controlar, mas depois tem-se a sensação de que estamos no corpo do outro. É algo muito surpreendente.
Música corporal
Quando nos observamos uns aos outros, há uma variedade de canais de informação decisivos para percebermos a presença do outro. Um deles é o nosso tom de voz. Quando falamos ao telefone, somos capazes de sentir algo das emoções e das intenções da pessoa que está no outro lado. Mas há outra que é tão importante -- talvez ainda mais -- e que não é muito conhecida. É o que eu chamo «música corporal» («body music»). Com efeito, somos muito sensíveis aos movimentos dos corpos das outras pessoas, ainda que possamos não dar muito por isso.
Há uma experiência muito interessante que se pode fazer filmando uma pessoa vestida com um fato preto num quarto escuro, com alguns sinais luminosos nalgumas regiões do corpo. Se pedirmos à pessoa para se mexer de um lado para o outro e filmarmos isto, a única coisa que o filme mostrará é uma dança de pequenos pontos luminosos, que se mexem de um lado para outro. Se mostrarem o filme desses pontos em movimento a alguém, ele será capaz de dizer a idade, o sexo, a disposição da pessoa e será capaz de a reconhecer se for alguém das suas relações. Ou seja, estará a ter informação semelhante à que teria se estivesse realmente a olhar para o seu rosto. Isto prova que nós somos muito sensíveis a este tipo de informação.
Ora acontece que, quando se está dentro de um ambiente de RV, a «música corporal» de cada participante é preservada. É por isso que a percepção da outra pessoa na RV é tão vivida, é por isso que se sente a «humanidade» do outro corpo e se sabe que não se trata apenas de um programa de computador.
Um mundo de completa fluidez
É maravilhoso começar a brincar com esta nova percepção do corpo na RV. Mas há uma coisa muito mais importante: a afinidade natural que as crianças têm com a ideia de RV. Nos EUA e no Japão, os personagens mais populares na televisão são os «Virtual Reality Power Rangers». Há este incrível fascínio com a possibilidade de transformar o mundo. Ora porque é que as crianças têm este fascínio e porque é que, em especial, estão tão interessadas na RV?
Não há nenhum modo de ter certezas acerca das experiências da primeira infância. É muito estranho, todos nós fomos crianças e, no entanto, as nossas origens estão-nos escondidas. Podemos falar com crianças, fazer experiências com crianças (como fez Piaget), tentar lembrar-nos da nossa infância, mas, no fim, há um véu entre nós e a nossa infância e, portanto, não há maneira de ter certezas absolutas.
Mas estou convencido de que as crianças pequenas têm uma imaginação fantástica e experimentam um enorme fascínio pelos universos imaginários que possuem dentro das suas cabeças -- universos que são diferentes todos os dias. Penso que não sabem o que são limites e têm um sentido natural de criatividade, de maravilhamento, de curiosidade. Por outro lado, penso que as crianças têm que se confrontar com certas experiências que não só são difíceis, mas também embaraçosas e humilhantes, vergonhosas até. Depois de estarem habituadas a este mundo interno de imaginação, completamente fluido e sobre o qual exercem um completo controlo, em que são o centro do universo, chegam a um ponto em que descobrem um outro tipo de realidade. Essa nova realidade é aquela onde os seus pais existem, é a única realidade onde não estão completamente sozinhos, é a única realidade onde têm comida e é a realidade física.
Interior e exterior
Nesta realidade física, a criança não é mais do que uma pequenina coisa cor-de-rosa, tenra e desamparada, com uma forma estranha -- uma espécie de amendoim ou uma coisa parecida. Isto é horrível, é uma tremenda queda do estado de graça, é pior do que ser corrido do jardim do paraíso. É muito embaraçoso e as crianças não gostam de aceitar isso. Lutam contra isso e penso que a conclusão dessa luta é aquilo a que nós chamamos estado adulto.
Mesmo quando somos adultos, é claro que continuamos a ter acesso à nossa imaginação, através dos nossos sonhos, das nossas fantasias. E, por outro lado, utilizamos diversas técnicas e desenvolvemos a linguagem e formas de arte para tentar ligar-nos uns aos outros. Mas o facto é que continuamos a viver esta contradição profunda, que consiste em termos estes dois mundos inconciliáveis entre os quais somos obrigados a escolher: o mundo da imaginação, que é um mundo interno, infinito e completamente flexível mas onde estamos completamente sós; ou o mundo exterior, que partilhamos com os outros, que é um mundo bastante difícil.
Este mundo físico é maravilhoso, adoro-o, adoro a natureza, adoro os corpos das pessoas, adoro todas estas coisas. No entanto, é muito frustrante que o mundo seja mais poderoso do que eu, é muito frustrante que não possamos reconstruir instantaneamente o mundo da nossa imaginação e sem esforço tal e qual como os nossos sonhos. É muito frustrante.
E as crianças olham para a RV e pensam para si próprias: «Aaaaha!, eis um modo de sair desta contradição». A RV é o único tipo de realidade que pode ser partilhada, como o mundo físico, mas que é potencialmente tão flexível como o mundo interno da imaginação. Tem ambas as qualidades de uma só vez. É aqui que começa a magia, é por isso que as crianças ficam tão fascinadas com ela.
Linguagens futuras
A maravilha da RV é que tanto as crianças como os adultos podem realizar, improvisar qualquer realidade possível e partilhá-la colectivamente, ter sonhos colectivos e aventuras maravilhosas, como um fantástico Carnaval que apenas Deus poderia sonhar.
Claro que é difícil lá chegar. O que é difícil não é o «hardware». O «hardware» que existe é suficientemente bom. Ainda é caro, mas está feito. A parte que é difícil de resolver é o «software». Agora que temos pela primeira vez um «medium» em que podemos tornar possível qualquer coisa, como é que o expressamos?
Podemos, por exemplo, dizer: «Bom, deve haver uma maneira de colocar uns fios no cérebro e sacar os pensamentos que lá estão e, com isso, automaticamente, fazer com que aquilo que se sonhe apareça em RV». Infelizmente, não acredito que isso funcione por várias razões. Uma delas é que não sabemos como é que o cérebro funciona e não acredito que o saibamos em breve.
Vamos supor, por exemplo, que sonhamos com um castelo. É possível que o cérebro consiga sintetizar a experiência do castelo sem ter que sintetizar o seu plano completo. Entendem? Como o cérebro está cheio de subjectividade, tem a possibilidade de sintetizar directamente a experiência subjectiva ou algo semelhante, sem sintetizar nada substancial acerca disso. O cérebro pode trabalhar em estados como a ilusão e não se poderá dizer se se está dentro de um sonho.
Creio que, na maior parte dos casos, o cérebro faz isso. Não construímos a maior parte das coisas que imaginamos e, por esse motivo, mesmo que se pudesse colocar um fio no cérebro, a informação não estaria ali para ser extraída. Mas há um outro caminho que, para mim, é muito mais interessante e que creio ser realizável -- e que tem a ver com o futuro das linguagens de programação. Hoje, a maior parte das linguagens de programação parece texto escrito com palavras muito invulgares que o computador consegue perceber. Aquilo que eu estou a tentar fazer -- e no que tenho trabalhado grande parte da minha vida profissional -- é uma nova abordagem das linguagens de programação. É muito difícil, mas pode ser que consiga [ri].
Eu também sou músico, toco piano regularmente e improviso. E uma das coisas que uma pessoa que toca piano pode dizer é que o seu corpo sabe mais de piano do que a sua mente. Por outras palavras: de vez em quando, ao tocar, percebo que o meu corpo, de algum modo, pensa mais rapidamente e é capaz de tomar decisões muito rápidas que a minha mente levaria muito tempo a explicar. É claro que são sempre a minha mente e o meu corpo a trabalhar juntos, mas o que interessa é que o resultado se obtém não através de um tipo de pensamento intelectual, simbólico, mas antes de algo orgânico, um tipo de pensamento muito orientado, que é muito poderoso.
O que eu quero fazer é trazer isso para a programação. O que imagino no futuro é que uma criança poderá pegar num instrumento musical dentro da RV -- não estamos a falar de um instrumento físico, mas de um instrumento simulado -- e «tocar» montanhas ou «tocar» cidades ou «tocar» pavões. Por outras palavras: usar um instrumento para ligar as capacidades físicas do movimento e do pensamento, e as qualidades mentais do raciocínio racional com um sistema bastante complexo de possíveis criações em «software»; e a capacidade de as animar num local, de as criar «tocando», e de as distribuir no espaço «dançando».
Acredito que este tipo de programação é possível e que, se for realizado, no futuro, poderá ser um novo tipo de expressão onde as crianças criem, essencialmente através deste tipo de «performances», o conteúdo de um mundo virtual tão depressa como nós agora criamos linguagens faladas, tão depressa como eu estou a falar neste momento.
Do que eu falo é de um mundo onde, por exemplo, eu posso de repente transformar-me num pavão, tão rapidamente quanto o digo, sem ter que pensar de antemão. Quanto mais depressa se tiver esta capacidade para a improvisação, quanto mais depressa se puder improvisar o conteúdo da realidade, mais depressa as gerações de crianças crescerão colectivamente com esta capacidade de improvisar o conteúdo da realidade. Então, ter-se-á a possibilidade de uma grande aventura cultural, nova e muito bonita.
Comunicação pós-simbólica
É a isso que chamo «comunicação pós-simbólica», comunicação sem a necessidade de símbolos, comunicação através da criação directa da realidade -- ideia um pouco complicada. Regressemos à linguagem.
A linguagem é a nossa técnica primária para comunicarmos uns com os outros. A linguagem é um modo expedito de utilizar as partes mais pequenas do universo que uma criança pode controlar. As crianças cedo descobrem na sua infância que podem controlar a boca e, um pouco mais tarde, que podem controlar as mãos e, a dado momento, que podem controlar o corpo. Estas são as únicas coisas que podem mover e controlar tão depressa quanto a experiência da vida. Claro que também podem aprender a desenhar uma imagem, mas isso demora muito mais tempo a adquirir.
O que a linguagem humana aprendeu foi a usar esta habilidade para mover pequeninas partes do universo (a nossa boca e as nossas mãos) para nos referirmos a todas as coisas que não temos o poder de fazer. Um exemplo: imaginem que toda a gente desta sala se transforma num polvo gigante cor de rubi a dançar o samba numa imensa bandeja de cristal flutuando sobre o planeta Saturno.
O esforço que tive para dizer isto foi muito pequeno: provavelmente, queimei um décimo de caloria ou menos. Quase nada. Mas pensem na quantidade de dinheiro que poupei dizendo isto em vez de realizar isto como uma experiência -- que seria a outra alternativa. Teria de ter gasto triliões e triliões de dólares num programa espacial para ser capaz de lançar uma bandeja até Saturno. Teria gasto triliões de dólares em engenharia genética para nos transformarmos em polvos, já para não falar do dinheiro que teria de gastar com lições de samba.
O que eu fiz foi, com alguns estalidos da minha língua, poupar triliões e triliões de dólares. É esta a magia dos símbolos. Símbolos, letras, utilizam esta pequena parte do universo que controlamos para nos referirmos a tudo aquilo que não temos o poder de realizar.
Claro que, na RV, as coisas seriam diferentes. Na RV, se a minha visão deste novo tipo de programa acontecer e se uma geração de crianças crescer com o domínio deste novo tipo de programas e tudo se combinar, então haverá uma alternativa. Aí, posso mesmo criar a experiência do polvo e de Saturno, e as outras pessoas poderão modificá-la ou adicionar este ou aquele elemento, tornando-a numa intersecção gigante das imaginações, num gigantesco sonho colectivo. Para mim, isto é uma visão maravilhosa de um jogo infinito.
Temos que ter alguns objectivos. Pode ser que, daqui a um tempo, toda a gente esteja disposta a apostar na exploração do espaço mas, por enquanto, parece que o espaço é um sítio bastante enfadonho, um molho de pedras todas muito parecidas umas com as outras a flutuar no vácuo, tudo muito decepcionante.
Suicídio em massa ou utopia
Se tiverem um grupo de crianças sem nada para fazer em todo o Verão e as fecharem numa casa, elas endoidecem. As crianças têm que ter algo para fazer e, para mim, passa-se exactamente a mesma coisa com a humanidade neste planeta. Temos que ter algo para fazer ou endoidecemos, temos que ter um projecto qualquer. Para mim, este é o exemplo perfeito desse tipo de projecto. É um desafio muito difícil, pode levar imenso tempo e é inofensivo.
O projecto dos utópicos do século XIX foi tentarem construir um mundo perfeito e, para tal, desenvolveram ideias muito tontas sobre o que era a pessoa ideal. Todo o projecto era muito absurdo porque eles não se preocupavam com a sobrevivência da humanidade. Para eles, a utopia era apenas um «hobby» ou uma louca busca intelectual.
Para nós, acho que a utopia é uma questão de sobrevivência. Penso que não há realmente muitas alternativas entre o suicídio em massa e a utopia. Penso que qualquer coisa que nos possa distrair do suicídio colectivo tem de ser algo de maravilhoso, tem de ser uma utopia.
Penso que esse é o novo objectivo tanto da ciência como da arte: afastar-nos do suicídio em massa. É o nosso repto moral extremo e acontece que é um desafio que pode ser conduzido com grande alegria e beleza.
(A primeira parte desta conferência foi publicada no número anterior de COMPUTADORES).
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