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<DOCNO>PUBLICO-19950616-160</DOCNO>
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<DATE>19950616</DATE>
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Alcindo Monteiro morreu aos 27 anos
«Não tinha astúcia nem sabia defender-se»
Era humilde. Dos sete filhos de Bernardo Monteiro não era o mais responsável, nem o mais expedito, ou o mais esperto e atrevido. Mas era, sem dúvida, o «mais doce», se com esta expressão -- vinda de uma «amiga sincera» -- quisermos significar alguém que tem um olhar meigo, deslumbra quem o vê dançar, gosta de animais e da natureza, é amável com todos e conquista o afecto das crianças.
Os amigos de Alcindo Monteiro não têm dúvidas: ele morreu porque «não sabia defender-se». É possível que a primeira bordoada dos alarves que na madrugada do dia 11 de Junho de 1995 o sovaram à morte o tenha deitado por terra. Não é essa a opinião de João Charneca, proprietário da «Auto Escapes do Barreiro», oficina onde Alcindo trabalhava:
«Ele não se deve ter dado conta de que o iam agredir. Não deve ter acreditado que os racistas lhe iam bater. Ele não se sentia preto. Isto é, quando aparecia na oficina um finório desses que se vê logo que têm dinheiro sem trabalhar, a dar-se ares, ele era dos que mais o gozava, sobretudo se vinha de África».
Seja como for, quem bateu em Alcindo sovou-o cobardemente, quando ele estava estendido por terra, de bruços. Charneca explica porquê: «De frente até estava limpo. Agora a parte de detrás da cabeça até metia medo. Tinham-lha metida toda para dentro».
Há um profundo sentimento de indignação no Barreiro, em especial no bairro dos Casquilhos, onde Alcindo cresceu e se fez homem. A Praceta Ribeiro Sanches tem um ar pacato, com carros estacionados em toda a volta, mas com um largo para a rapaziada «ensaiar uns toques de bola». Ontem, ao princípio da tarde, dia feriado, Manuel, 13 anos, foi o primeiro a chegar. Os outros ainda estavam a almoçar. O parceiro era um candeeiro, enquanto esperava que alguém descesse. É claro que conhecia o Alcindo. Quando vinha do trabalho também «dava uns toques». Com os sobrinhos não, que ainda são pequenos: «Jogava connosco».
Os quatro sobrinhos, de idades entre os três e os sete anos, levava-os a passear ao parque Catarina Eufémia aos domingos de manhã. Era mais do que uma obrigação. Era uma devoção. Brincava com eles, deixava-os correr e, às vezes, levava-os a casa do seu companheiro Luís, «ainda mais amigo dos animais do que ele». Olhavam para os canários, afagavam os hamsters, davam comida aos pombos, assustavam uns porquinhos da Índia.
Assim chegava a hora de almoço, que todos os domingos é (era) de festa, com a mãe a preparar a refeição para os filhos, genros, noras e netos. Com o decorrer dos anos, a Praceta Ribeiro Sanches povoou-se com extensões da família Monteiro. No número 12, onde há 17 anos Bernardo Monteiro comprou um apartamento para alojar a família que trouxe de S. Vicente, já se instalaram, paredes meias, dois ramos da família. Duas portas a seguir vive outro ramo Monteiro.
É, indubitavelmente, uma família unida em torno da figura patriarcal do pai Bernardo, a quem custa acreditar que lhe tenham morto um filho -- e logo o Alcino. «Ninguém me paga a morte do filho. Mas quero justiça» -- foram as palavras que dirigiu aos amigos, no aeroporto, há três dias, quando veio da Alemanha para o funeral.
É fogueiro num «ferry-boat» do Báltico. Levou consigo o filho mais velho, Albertino. Ensinou a profissão de marítimo a um outro, que ficou em Cabo Verde, a tomar conta da velha casa da família, embarcadiço num cargueiro que faz rota para Luanda.
Quando comprou a casa dos Casquilhos, no Barreiro, decidiu optar pela cidadania portuguesa. Os mais novos -- Uca, Jorge, Luísa, Joana e o Alcindo -- ficaram à guarda da mãe quando o pai emigrou para a Alemanha, com o Albertino.
Todos os anos, pelo menos no Natal, o patriarca visita a família. Impõe naturalmente o respeito e, diz quem conhece os hábitos daquela casa, «quando ele cá está e diz que se janta às nove da noite, toda a gente está à mesa a essa hora».
A perda de Alcindo deixou uma dor profunda em toda a família, daquelas que fazem secar as lágrimas.
O sonho e a vivenda
«Sabe que quando o mataram ainda nem sequer tinha entrado num bar?» -- diz João Charneca, interrompendo a frase que repete monotonamente: «Quase no século XXI e passarem-se coisas destas!»
Explica com minúcia como chegou a essa conclusão: «Tinha-me dito que estava sem dinheiro. Então disse-lhe: mete um vale. Ora eu sei de quanto foi e sei que no dinheiro que lhe encontraram na algibeira só faltavam trezentos e pouco escudos. Foi o bilhete do barco. Se soubesse que isto ia acontecer, tinha-o levado comigo a Madrid».
De facto, Charneca e uns amigos aproveitaram o fim de semana para dar um salto a Espanha. Alcindo não foi porque não gostava de gastar dinheiro. Todos os meses, logo que recebia o ordenado, «a primeira coisa que fazia era depositar uma parte numa conta bancária». Por isso, às vezes, precisava de meter um vale, sobretudo quando o trabalho na oficina era mais espaçado. É que Alcindo contava com as gorjetas e procurava que elas dessem para as extravagâncias.
Não desgostava do bairro dos Casquilhos onde aprendeu a ler, escrever e a jogar à bola. Mas tinha um sonho, que o afastava daquela praceta. Alcindo fazia economias para comprar uma vivenda. Nas horas vagas entretinha-se a idealizá-la e desenhá-la. Ia ser grande, para lá caberem todos os sobrinhos e filhos, que brincariam numa piscina. Para si e para os amigos pensara num avançado, em forma de torreão, onde se deliciariam com petiscos que ele próprio prepararia.
Além de mecânico, era um exímio cozinheiro. Chegou a pensar ser essa a sua profissão. Adquiriu alguma experiência na tropa, onde prestou serviço na intendência. Frequentou, depois, um curso profissional e chegou a trabalhar no restaurante Panorâmico de Monsanto (Lisboa). Mas não gostou do ambiente e voltou para a oficina do Barreiro.
Aí, com o consentimento e agrado do patrão fez um reservado onde instalou uma improvisada cozinha para «uma pândegas» entre amigos. Arranjou um fogão de duas bocas, com forno. O frigorífico trouxe-o o patrão. Um camarada de trabalho trouxe uma máquina de café avariada, que ele consertou. Uma panela avantajada, uma sertã e um tacho faziam o trem de cozinha. Ao lado do fogão, um molho de malaguetas. Por cima, de uma prancha feita prateleira, está a dispensa, com uma garrafa de azeite, óleo, vinagre, umas três cebolas, vários dentes de alhos, sal, fósforos...
A sua maior extravagância era dançar. «Era mais do que isso. Tinha orgulho e era das poucas coisas de que se envaidecia. Ganhou vários concursos», esclarece Charneca, que recorda um episódio:
«Aqui há uns meses chegou-me à oficina e via-se logo que tinha um segredo para contar. A certa altura perguntei-lhe o que tinha. Mostrou-me uma nota de dez contos. Ena pá! Estás rico. Onde é os arranjaste? Ganhei-os ontem num concurso de dança, disse-me, todo inchado».
Foi esse gosto -- essa necessidade física de sentir o corpo vibrar -- que o fez vir no sábado, já era quase meia-noite, a Lisboa.
Ficara todo o dia a cuidar dos sobrinhos, pois a avô estava adoentada e ele ofereceu-se, sem esforço, para os levar a passear durante o dia, dar-lhes o jantar e ajudar a metê-los na cama.
Despachada essa tarefa, foi desafiar uns amigos para darem uma volta pela noite lisboeta. Apetecia-lhe dançar. No dia seguinte era domingo, podia mandriar, dispensara-se de ir passear os sobrinhos.
Os amigos estavam mais «para a deita». Acompanhavam-no, por desfastio, mas só se fosse numa discoteca ali no Barreiro. Que não -- retorquiu Alcindo. Para dançar a sério, só em Lisboa. Estava com aquela vontade e não ia deixar de a satisfazer.
Disse adeus e embarcou. Chegou à outra margem, mas não pode dançar. Alguém, brutalmente, o impediu, do mesmo modo que lhe desfazia o sonho de uma vivenda com uma piscina e muitos miúdos a chapinhar nela, a salpicar a casa toda.
Um sonho que Alcindo Monteiro se achava capaz de realizar. Para o partilhar com os amigos e a família.
António Melo
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