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<DOCNO>PUBLICO-19950701-212</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950701-212</DOCID>
<DATE>19950701</DATE>
<CATEGORY>Sociedade</CATEGORY>
<AUTHOR>RCM</AUTHOR>
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Os herdeiros nostálgicos da Boavista
Mariozinho já estava a bufar. Deu três passos na rua, voltou a trás e esticou o pescoço, indignado, para os amigos. «Não e não! Deixámos de ser! Eu sou cabo-verdiano!» Mas Aguinaldo mostrava os dentes e continuava.
-- Se Cabo Verde tivesse uma situação como os Açores e a Madeira, estávamos muito melhor!
-- É verdade, concordou José.
-- É verdade, repetiu Edilson.
-- Aqui, todo o povo é português. Todos, todos são portugueses e não é só no futebol. É próprio do nativo da Boavista ser português.
- Eu sou cabo-verdiano, eu não concordo nada com isso, gritou Mariozinho. E amuou e afastou-se.
-- A independência nunca chegou à ilha da Boavista, sentenciou Aguinaldo. Se até o nosso ex-Presidente, que é de cá e andou na luta, disse isso, como é que nós não havemos de dizer, hã?
Lá vinha outra vez a entrevista dada por Aristides Pereira, ao «Expresso», sobre o suposto desejo dos cabo-verdianos por uma simples autonomia. Foi há dois anos, foi atabalhoadamente negada pelo próprio, mas espalhou-se por Cabo Verde como o vento leste. Uma dor de alma para a maioria das pessoas, mas continua a alimentar os corações mais radicais como o de Aguinaldo, de 23 anos. Na Povoação Velha, a primeira localidade fundada na ilha pelos portugueses, deu grandes debates sobre autonomia relativa ou verdadeira independência.
Mariozinho, num canto, mais calmo, tentava uma explicação lógica para os «disparates» dos amigos. Os argumentos dos que defendem que Cabo Verde devia ter ficado «debaixo da bandeira portuguesa» explicam-se pela vontade de emigrar, o que cada vez é mais difícil. E por um receio que passou de alguns pais para alguns filhos, nascido no próprio dia da independência, há vinte anos, de que Cabo Verde, tão pobre, não se aguentaria e que as pessoas passariam grandes fomes e dificuldades. Mas a ex-colónia, mantendo a devoção a Portugal, fez-se nação e, com a ajuda estrangeira e trabalho duro, desenvolveu-se. «O problema é que aqui tem falta de trabalho. Toda a gente quer emigrar.»
Ele, que fez 28 anos, não. Para já, porque tem um irmão em Portugal que caiu no desemprego. Muitos cabo-verdianos vivem mal, longe da terra. «Costumamos ver na televisão. Eles passam muita amargura. Eu, para passar mal, prefiro passar mal aqui, ou não é?»
Na Boavista, rodeada de praias brancas e dunas altíssimas, é quase impossível encontrar pessoas fora das povoações. No interior, semeado de pedras vulcânicas, vagueiam burricos selvagens e cabras, descendentes do tempo antigo em que criação de gado, para encher de carne os navios que aportavam na Boavista, extenuou a vegetação da ilha.
Terceira em tamanho do arquipélago, a Boavista não tem sequer quatro mil habitantes, tantos como há um século. Todo o crescimento demográfico tem sido rapidamente descompensado pela emigração. Nos últimos anos, a lógica dos mercados e políticas internacionais criou um problema bicudo aos homens da ilha. As raparigas ainda conseguem sair, queridas em Itália e na França como empregadas domésticas. Os rapazes assistem ao fecho violento das portas de Portugal, Holanda e Estados Unidos. De modo que, quando uma mulher sai à rua, há pelo menos quatro rapagões que desligam a conversa e ficam esquisitos.
-- Foi uma grande luta. Lutei, lutei bastante, confessara Raul, rindo-se para Cândida.
Conquistou-a há três meses, depois de um ano inteiro de corte e simpatias e a apurar técnicas para enxotar os outros pretendentes de Cândida. E se amanhã dessem a oportunidade a Raul de emigrar?
-- Eu ia, mas ficava a pensar nela.
«É a nossa casa»
No velho solar de Sal-Rei, por cima dos armazéns comerciais da casa Benoliel, Alice Spencer nunca se casou. «A gente casa quando Deus quer. Deus não me destinou para isso.» Alice Spencer, 84 anos, na casa construída há cem anos pelo avô, com madeiras da Guiné e de Angola, um tamarindo no quintal, assistiu ao último período da decadência económica da ilha. No princípio do século passado, a Boavista, exportadora de sal, carne salgada e corantes naturais, chegou a ter cônsules residentes da Inglaterra, Estados Unidos, Argentina e Brasil. Sal-Rei foi a sede da comissão mista luso-inglesa para o fim da escravatura. Surtos de peste amarela e a concorrência de outros portos arrastaram-na para o declínio.
Nas últimas décadas deste século, foram quase aniquiladas as exportações de queijo, peles, purga e urzela que Alice Spencer, em pequena, via embarcar nos navios. A pesca do atum foi-se também a baixo, quando a fábrica de conserva da vila, especializada em grandes latas de dois e cinco quilos, não adquiriu a tempo maquinaria para conservas mais pequenas. A solução, espera-se, será o turismo. Dois projectos italianos estão a construir hotéis em duas praias, das mais puras e belas do mundo. Se um dia encherem, poderão fazer da ilha um local com mais turistas estrangeiros que boa-vistenses.
Alice Spencer defende esta opção para a ilha e para Sal-Rei, uma vila que antes da independência era periodicamente coberta pelas dunas. A construção de paliçadas, na zona norte, acabou com a invasão das areias, consequência da erosão nas reservas de mármore, mas que, segundo a crença popular, vêm a voar 600 quilómetros, do Sara, por cima do Atlântico. «No dia 5 de Julho de 1975 a gente ficou... uns com saudades, outros satisfeitos», disse a senhora Spencer, fechando uma mão branquíssima na outra. «A festa foi ali no largo e eu sentia-me muito satisfeita, deixe-me dizer-lhe.» Podia ter escolhido a nacionalidade portuguesa, escolheu a cabo-verdiana.
-- Sou cabo-verdiana. Por pobrezinha que seja a nossa casa, estamos bem nela, não acha?
A hora e meio de caminho de Sal-Rei, em Fundo das Figueiras, Patrício Pereira nunca se meteu na política, pelo menos directamente. Nos anos 60, nas fases agudas da guerra de libertação na Guiné, o mais velho dos 13 irmãos do primeiro Presidente da República, Aristides, era frequentemente visitado pela PIDE. Para nada, porque sobre o irmão, então guerrilheiro, Patrício sabia apenas que continuava vivo e sem poiso fixo no Senegal ou na Guiné. «Eu, até ao 25 de Abril, pensava que ele se tinha metido numa aventura sem saída... Depois começou a haver esclarecimento e as pessoas compreenderam. Até as que se questionavam `como é que Cabo Verde se vai governar, sem recursos, sem nada?'»
-- Acho que Cabo Verde tem ligação suficiente a Portugal. Há boas relações bilaterais, não há nada de que se queixar, disse o professor reformado, num português impecável aprendido com o pai, um pároco. Patrício Pereira já se irritou o suficiente com a história da entrevista do irmão. Decidiu, pura e simplesmente, que ela não existiu. «Eu não acredito que ele tenha dito aquilo», explicou, calmamente.
Mariozinho, na Povoação Velha, mantinha alguma irritação com a conversa de Aguinaldo. «Isso não fazia qualquer sentido. Cabo Verde é independente.» Depois ficou triste e sussurrou. «Podemos ser irmãos, nós e os portugueses, aqui dizemos que somos irmãos. Mas eu tenho esta cor de pele. Os portugueses dizem que nós somos irmãos?»
Rui Cardoso Martins
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