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<DATE>19950718</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>FM</AUTHOR>
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Mick Jagger entrevistado por Robin Eggar
por
Robin Eggar
Na sala do andar superior do Henrys Wine Bar, com vista para o Tamisa, uma equipa de televisão francesa encontra-se num estado de hiperexcitação. Mick Jagger chegou finalmente, se bem que com 40 minutos de atraso. Afinal de contas, a sua mansão em Richmond Hill fica a 400 metros. O vocalista dos Stones concordou dar a entrevista em francês. Embora enferrujado, tem uma boa pronúncia, no fim já gesticula com as mãos e conta uma anedota sobre franceses e ingleses. Gasta bastante tempo à procura do cambiante semântico correcto, exacto, em detrimento do conteúdo. Jagger sempre foi exímio em dizer nada com precisão. Para os entrevistadores, esta sempre foi a sua característica mais frustrante.
Beberricando cerveja num copo alto, o dente de diamante a brilhar na boca enorme, admite logo achar tudo isto muito cansativo. O tempo de atenção de Jagger é notoriamente curto, quer acabar a entrevista ao fim de 40 minutos, pois nessa noite vai levar os pais ao teatro em Richmond. É a única altura em que resvala para aquele falso sotaque «cockney» e, em seguida, volta ao normal. Apanhá-lo é o mesmo que lutar contra o nevoeiro. Embora extremamente agradável, tem o hábito frustrante de começar uma resposta com toda a veemência e de recuar em seguida, antes que cometa alguma indiscrição, antes de a deixar esmorecer em generalidades ou no nada. Detesta ser apanhado em qualquer informação específica, seja uma data, um amigo, uma canção ou o título do último quadro que comprou. [«Striptease» do artista inglês Ed Burra, uma aguarela de uma artista de «strip-tease» no Apollo Theatre, no Harlem, em 1933. Custou-lhe cerca de 75 mil libras]. Não quer dar a conhecer ao mundo os alicerces da sua vida, que se saiba que decora a casa num misto de estilos antigo e contemporâneo, que aprecia o humor inerente ao «design» do mobiliário inglês.
Intrinsecamente preocupado com o aspecto das coisas, prefere obstinadamente projectar aos olhos do público uma caricatura bidimensional. Como os discos que faz quer apresentar duas «remixes» diferentes ao mundo. Em sua opinião, a superestrela arrogante, que exige «Sympathy For the Devil» no próximo milénio, não se sente bem ao lado do homem mais pensativo e reservado. Talvez em consequência deste facto, o Jagger intelectualmente esquivo tem sido cada vez mais -- e injustamente -- descartado como pouco inteligente, não considerado enigmático mas sim vazio.
Pode ser ciúme puro e simples pois aos 51 anos, um neto e cinco filhos, tem o corpo esbelto, forte e tonificado de um homem no final da casa dos trinta e o estilo de vida de um hedonista do «jet set». Estima-se em 100 milhões de libras a fortuna de Jagger, com residências em Londres, no Loire, em Nova Iorque e em Mustique. Enquanto os seus contemporâneos andam às apalpadelas nas orlas da meia idade ele continua a fazer praticamente o que lhe apetece. Pelo menos, os anos desenham-lhe linhas ainda mais cavadas nas faces, a cara transformou-se naqueles lábios das caricaturas e encontra-se bem documentada a sua incapacidade de recordar o passado. Mesmo assim, lembra-se de cada uma das canções que gravou e está bem ciente de como os Rolling Stones se tornaram parte integrante da cultura popular. Mick Jagger, deve concluir-se, não quer que o público o veja como realmente é.
Talvez para Jagger o passado seja outro mundo, que é melhor deixar para trás -- mas não ser esquecido pelos outros, pois é assim que crescem as lendas. Mais do que a maioria dos seus pares sempre preferiu viver no presente. Ainda o excita. Como a sua música que para ele ainda tem uma tal importância que ele próprio não consegue exprimi-la de uma forma suficientemente poética, excita milhões.
MICK JAGGER -- PERGUNTAS E RESPOSTAS por ROBIN EGGAR
PERGUNTA -- Uma vez Keith Richards descreveu-o como sendo o líder de um grupo de tipos simpáticos. Quem é actualmente?
MICK JAGGER -- Não sei se sou capaz de responder a essa pergunta, as pessoas são diferentes consoante com quem estão e das relações que mantêm com essas pessoas. Quando estou com a família sou diferente de quando estou a trabalhar, a mesma pessoa, mas projectando um lado diferente da personalidade. Por exemplo, posso ser uma pessoa muito paciente, ou muito calmo e amistoso até me zangar.
Ando nesta maldita digressão há quase um ano, parece que estou numa camioneta, o mesmo grupo de pessoas a fazer as mesmas coisas, por isso entro naquela onda de ser um cantor rock -- o que de facto é mais ou menos inevitável. Posso não cantar todos os dias, mas represento esse papel, o ser essa «persona». Levo isso mesmo a peito, o que é um dos aspectos negativos; uma pessoa torna-se muito o centro das atenções, o que não pode ser bom para nós. No fim da digressão já não vou fazer isso, portanto esperemos que passe a agir de acordo com outra das facetas da minha personalidade.
Afecta o modo como ajo perante as pessoas. Neste momento, quando se me dirigem, é horrível, acho instintivamente que vão pedir-me um autógrafo. Quando não ando na estrada, frequentemente não me reconhecem e perguntam-me o caminho para o Richmond Odeon, ou, como me aconteceu recentemente numa loja de vestuário, É empregado da loja? Podia indicar-me onde fica o departamento de calças de homem, isto é um 34?
P. -- Após esta entrevista, irá a pé para sua casa, que fica a 900 metros daqui. Quando transpuser o portão, vai ser difícil deixar de ser Mick Jagger, a estrela rock?
R. -- Não, paro assim que transponho a porta. A táctica é a mesma de quando ando em digressão. Tem que se descartar a personalidade do palco quando se acaba, temos que nos livrar dela, porque não é muito atraente numa sala pequena. Muita gente leva a vida de cantor rock demasiado a sério, fora do palco estão constantemente a querer expressar-se do mesmo modo, o que acaba por levar uma pessoa a estar permanentemente bêbeda, ou fora de si, ou a partir coisas. O que é um comportamento perfeitamente aceitável no palco, porque toda a gente gosta de nos ver ser escandalosos, mas, quando se chega a casa, não é comportamento que deva ter-se.
Nem sempre fui capaz de fazer isso, longos períodos houve em que representava o papel de estrela rock 24 horas por dia, altura em que era incapaz de ser outra coisa e acho que foram períodos em que eu não era nada atraente. Isso durou anos e anos -- provavelmente as décadas de 60 e 70 inteiras.
P. -- Quando um grupo da dimensão dos Rolling Stones anda na estrada encontra-se completamente protegido do stress e das pressões do mundo real. Aviões particulares, hotéis de luxo, guarda-costas... e esses excessos têm sido constantes -- a fazer fé no «The True Adventures of the Rolling Stones» de Stanley Booth -- desde o início dos anos 70. No centro desta corte dos nossos dias encontra-se o grupo, a família real. Ao contrário do resto de nós, mortais, que não estamos escudados da realidade.
R. -- Sim, estamos, quando andamos na estrada, mas ponho em causa o estarmos livres disso pois temos que fazer as mesmas coisas que toda a gente. Acho que é tudo uma ilusão... bem, há muita gente com motorista, não é preciso pertencer a um grupo rock para ter um, nem para gozar outros luxos. Creio que parte do processo de crescimento consiste na compreensão que as coisas banais são por vezes uma ajuda psicológica para nos levar de volta para a realidade. Embora seja aborrecido. Odeio fazer compras, mesmo comprar coisas belas e caras, e não gosto de ir ao supermercado, mas acho que essas coisas me tornam menos distante da sociedade. De qualquer maneira, se uma pessoa quer escrever é muito bom ver como se passam as coisas à nossa volta. Pode, contudo, dizer-se que sou um artista e portanto não quero passar todo o meu tempo a fazer compras e a cozinhar porque assim não tenho tempo para fazer aquilo que faço bem [Ri].
Não fico fechado no quarto, gosto de sair todos os dias e ver o que as pessoas andam a fazer na sua vida normal. É óbvio que não consigo apreender tudo, não se consegue ver muito por baixo da superfície a não ser que se seja muito perspicaz, caso em que talvez se vejam alguns pormenores. Se mantivermos os olhos e os ouvidos e o nariz abertos vemos muito do que se passa pelo mundo.
P. -- Como, por exemplo?
R. -- Em Tóquio, perdi-me, o que é fácil de acontecer. Já me aconteceu algumas vezes e a minha primeira reacção é «O que é que vou fazer?», «Onde estou?». Então as pessoas começam a falar connosco e percebemos que não há azar, e damos connosco em situações nas quais normalmente não nos encontraríamos. Passa-se muita coisa nas ruas de Tóquio, é um lugar fascinante. Diz-se que os japoneses não têm sentido de humor, portanto eu tentava perceber o que é, temos que nos esforçar mesmo se não falamos japonês. Via grupos de empregadas de escritório embriagadas na rua à noite, e perguntava-me o que fazem para se descontrair. É uma sociedade cheia de pressões, um ambiente terrivelmente apinhado no qual têm uma quantidade incrível de regras de comportamento. Vi essas regras em funcionamento e perguntava-me se alguma vez se vão abaixo. O gás Sarin no metro prova que sim.
P. -- Ainda é o centro de uma corte corrupta onde lhe trazem tudo o que deseja?
R. -- Não!
P. -- Qual a pessoa mais interessante que conheceu recentemente?
R. -- Nem queria acreditar quando dei de caras com Vaclav Havel [Presidente da República Checa e admirador dos Stones] numa pequena pista de aterragem no meio da Austrália. Recebemos uma chamada telefónica quando íamos a sair, a dizer que queria cumprimentar-nos. Acho-o um tipo espantoso, passou de figura literária do «underground» ao extremo oposto: um político-espectáculo. É estranho.
P. -- Não existe um relação crescente entre o rock and roll e a política?
R. -- Essa é uma pergunta difícil. Nos Estados Unidos, existe uma maior tradição de as pessoas do mundo do espectáculo participarem na angariação de fundos, demonstrando o seu apoio. Em Inglaterra, quem tem grandes mercearias sempre contribuiu com dinheiro, os sindicatos dão dinheiro, mas as pessoas no mundo do espectáculo -- pelo menos, tanto quanto sei -- não têm sido ostensivos no apoio a um ou outro partido. Eu sempre alinhei nessa posição.
P. -- Em 1968, Tom Driberg [mexeriqueiro conhecido, deputado trabalhista e homossexual] não tentou recrutá-lo para deputado do Partido Trabalhista?
R. -- Tom Driberg era muito divertido, uma «grande dama» da época, conhecia toda a gente, era uma companhia divertida e escandaloso. Nesses dias conturbados, em que as pessoas pensavam em mim, não creio honestamente que a vida de deputado me tivesse assentado bem. Houve actores que se tornaram deputados mas, tanto quanto me lembro, nenhum deles teve grande êxito. Vejam a deputada pelo Hampstead, Glenda Jackson, se calhar estou completamente enganado, ela vai acabar por ser ministra da Cultura e vai adorar.
Francamente, nunca fui do género partidário. Nunca achei que um partido fosse tão melhor que outro a ponto de o apoiar. Prefiro ficar calado do que gritar que tudo é uma maravilha. Quando me pediram que apoiasse o Partido Trabalhista, este estava tão dominado pelos sindicatos e tão esquisito. Quando me pediram que apoiasse o Partido Conservador nunca consegui concordar com muitas das políticas que advogava. Achei que a Senhora Thatcher fez algumas coisas óptimas, mas houve tantas más que o balanço acabou por ser negativo.
P. -- O actual primeiro-ministro tem a sua idade, o Presidente dos Estados Unidos é quatro anos mais novo e Tony Blair, líder do Partido Trabalhista que se diz irá ser o próximo primeiro-ministro, dez anos mais novo e provavelmente passou muito tempo a ouvir os Stones.
R. -- Sim, ele esteve numa banda rock, Tom Blair, viu as fotos? É óbvio que não era muito boa, se não ele não seria o líder do Partido Trabalhista.
P. -- Como é que se sente com um líder do país que é mais novo do que o Mick Jagger, potencialmente influenciado por si?
R. -- Não acho nada esquisito. Toda a gente envelhece e as rédeas do poder passam para uma geração mais nova. O que é interessante é que antes os políticos achavam-me uma pessoa estranha que não tinha nada a dizer sobre coisa nenhuma e agora têm a mesma idade que eu ou são mais novos e gostam de nos conhecer.
P. -- O que disse a Al Gore quando se encontrou com ele no ano passado?
R. -- Não muito, não falámos muito. Disse umas coisas a Hillary Clinton. Acho que se pensamos alguma coisa e se temos a oportunidade de falar com alguém do poder devemos dizer-lho. São os nossos políticos, nós é que os elegemos, ou não, mas são funcionários públicos. Se um tipo se encontra com John Major ou com Bill Clinton pode apostar o que quiser que vai dizer-lhes: Detestei que me tivesse subido os impostos, seu filho da mãe ou por que é que fechou este hospital. Digo o que me vai na cabeça, dependendo do que está a chatear-me nessa semana. Não se consegue estar muito tempo com essas pessoas, por isso temos que aproveitar ao máximo.
P. -- Então é assim como entrevistar uma estrela rock?
R. -- Normalmente ainda menos tempo [ri].
P. -- O seu estilo de vida é peripatético, cosmopolita e internacional. A sua primeira mulher era nicaraguense, a segunda é americana. Ainda se considera britânico, europeu ou cidadão do mundo?
R. -- Não creio que isso seja particularmente importante. Nasci e fui educado em Inglaterra, logo sou inglês. A nossa nacionalidade é o lugar onde pertencemos culturalmente e não a que está no passaporte, é o lugar onde entendemos os cambiantes culturais da sociedade. Em Inglaterra compreendo realmente a cultura mas apanhei outras pelo caminho. Sinto-me muito à vontade na América porque passei lá muito tempo e basta-me estar três semanas na Austrália para perceber mais ou menos o que está a passar-se na vida política e social. São aprendizagens muito rápidas devido à língua.
A França é muito mais difícil por a língua ser tão diferente, mas após cerca de um mês o meu francês fica bastante bom, consigo perceber quase tudo o que está a passar-se e até começo a falar com as mãos. Ao passo que no Japão grande parte do tempo é como se estivesse em Marte.
P. -- Porque continuam os Stones a fazer digressões?
R. -- [Ri] Adoro essa pergunta. Em primeiro lugar, há a exigência por parte das pessoas, que querem ver-nos, não faríamos digressões se não houvesse. Os Rolling Stones gostam mesmo daquilo que fazem, sair e fazer um bom espectáculo.
Porque é algo de que gosto muito e é o que faço para ganhar a vida. Claro que não tenho que fazê-lo, mas a vida seria terrivelmente aborrecida se a passasse sentado. Lá porque juntei alguns escudos não fico recostado sem fazer nada, a vida não é assim, talvez não se trabalhe tanto ou se faça algo diferente, não se anda em digressão 12 meses por ano.
Se uma pessoa for competitiva em qualquer campo afirma-se cada vez que sai de casa. Um advogado afirma-se cada vez que faz um bom negócio, um atleta cada vez que compete e ganha. Na verdade, detesto estas comparações com os atletas, esses competem directamente contra outrem, seja lado a lado seja em campos opostos, ao passo que no rock and roll isso nunca se passa.
Sempre que vou para o palco no início de uma nova digressão, todas as noites me reafirmo. Pode dizer-se que de cada vez que um homem tem relações sexuais tem que se afirmar [ri]... há uma certa «performance» que se espera em todos esses feitos, não é? Lá porque o fizemos uma vez não quer dizer que sejamos capazes de o fazer de novo.
P. -- Então quem é a concorrência?
R. -- Há muita, como os Pink Floyd, uma banda com enormes sucessos em digressões em estádios. Temos a tendência de falar uns com os outros sobre como diferentes países são bons nuns anos e noutros não, partilhamos muito pessoal de palco e de iluminação. Cada um dos grupos faz avançar a tecnologia do outro. Acontecia um pouco isso com os Beatles nos velhos tempos, mas nessa altura a competição era muito maior.
P. -- Ah, pois, dinheiro. Há uma sensação generalizada no público de que o Mick Jagger é a cabeça dos Rolling Stones enquanto o Keith é o coração, o que provavelmente faz que o Charlie seja os pés. Diz-se muitas vezes que a cabeça do Keith está cheia de notas de música, ao passo que a sua está cheia de folhas de contabilidade; ele lê o «International Musician» e o Mick prefere o «Financial Times». Diga-nos a verdade.
R. -- Eu adoro montar grandes espectáculos. Contrariamente ao que se diz, não estou interessado no aspecto comercial -- apenas como um meio auxiliar para pôr o espectáculo de pé. Montá-lo... para mim é um feito. Não estou muito interessado nas folhas de contabilidade. O que me interessa de verdade, na montagem de uma digressão, é o aspecto, qual é o aspecto do palco, como o vêem os espectadores quando entram, como está iluminado. Chega?
Então um contabilista diz-me: «Bom, isso é óptimo, Mick. Já te apercebeste de que vai custar 30 milhões de dólares? Vais ter que fazer cortes.» Por isso tenho que ouvir um especialistas em contabilidade, pois, de outro modo, os Rolling Stones não ganham dinheiro nenhum e o Keith é o primeiro a queixar-se [ri].
Como qualquer pessoa envolvida num empreendimento desta dimensão, aprendi a ter um certo respeito pelos números. Quem me dera não ter. Estamos a tentar criar algo, fazer uns palcos de uma beleza deslumbrante. Se só nos interessássemos por dinheiro, íamos para um palco vazio com meia dúzia de projectores.
Outra coisa que me preocupa -- se quer que fale de folhas de contabilidade -- é que o preço dos bilhetes seja fixado na quantia justa para que as pessoas apareçam nos concertos e obtenham aquilo por que pagaram. Pergunto sempre aos promotores locais qual o preço e, se achar muito, digo. Nunca é baixo, é sempre demasiado elevado e tenho sempre que reduzi-lo. Na Austrália e na América, sentava-me com o Michael [Cohl, promotor de digressões] e, se o preço era 50 dólares e eu achava que devia ser 30, tinha que o discutir. Não a quantia, mas quantos lugares a 30, quantos a 50, onde vão ficar, se há lugares baratos em quantidade suficiente, se há um número suficiente de lugares caros. Não me sento no camarim a contar as receitas.
Para mim, o mais importante sempre foi cantar mas é preciso uma grande quantidade de preparativos antes. Não estou disposto a ir para o palco e actuar abaixo do nível por que os Rolling Stones se pautaram durante todos estes anos.
P. -- Podia, então, arranjar emprego como empresário de digressões em estádios?
R. -- Sim, provavelmente podia, pois faço isso há tanto tempo que acho que tenho muito para oferecer... Seria muito frustrante, porque é apenas uma das facetas daquilo que faço. Actuar é muito mais importante para mim. Em última análise é a minha reputação que está em jogo e não a do empresário ou a dos contabilistas. Para eles, pode ser um dia mau, mas nós arriscamo-nos ao fracasso.
P. -- As preferências musicais da maior parte do vosso público original calcificaram há muito. Alguns críticos sugerem que os Stones também.
R. -- É natural, a maioria das pessoas gosta do que gostavam quando eram adolescentes ou quando tinham vinte anos e não acrescentam quase nada de novo. O grande problema da indústria discográfica é levar as pessoas acima dos 35 a comprar discos, se compram é aquele com os êxitos estrondosos dos Eagles. Com os músicos é diferente, nós ouvimos mais. É a nossa especialidade.
Há tantas bandas novas, os Oasis estão agora na onda, os Suede estiveram o ano passado. Os Blur entre as duas. É como as estrelas cadentes, estas bandas empolgam-me, mas não sei se vão durar. Toda a gente adorava os Suede e ninguém comprou o segundo álbum. Acho que os Oasis vão fazer alguns espectáculos connosco, nunca os vi ao vivo. A prova dos nove é ver alguém ao vivo, não basta ouvir um disco. Os Massive Attack têm um som interessante, entre a «dance» e o rock. Apesar de ser evidente que misturar os dois sons é uma boa política comercial, é um mercado muito dividido, sempre foi.
P. -- É verdade que Andrew Loog Oldham os fechou, a si e ao Keith, numa sala e lhes disse que não saíssem sem terem escrito algumas canções?
R. -- [Faz uma pausa e depois fala com ar pesaroso] Acho que não, embora seja uma boa história. Ele era parecido com um professor a dizer «têm que ficar e acabar a composição». Nós saímos com uma canção intitulada «It Should Be You», era mesmo um horror. Sim, ainda me lembro do refrão. Foi gravada pelo George Bean, que era um dos muitos protegidos do Andrew. Espero que tenhamos melhorado um pouco desde essa altura.
P. -- Então como é que escreve canções agora?
R. -- Enquanto se escreve pode fazer-se qualquer coisa, para os Voodoo Lounge sentava-me com o Charlie a tocar «house music» no teclado -- uma espécie de sons malucos, tocou música do Bali durante umas horas, pôs toda a gente doida. «Blinded by Rainbows» [número «controverso» dos Voodoo Lounge que inclui o verso «when the Semtex bomb goes off»] estava toda na minha cabeça e não no papel. Acho que é bom haver uma que mexa um bocado connosco, caso contrário as canções são todas sobre raparigas e carros e a falta de maturidade. O problema com as canções novas surge no início da digressão, quando as pessoas não conhecem o disco. Nós dizemos: «E agora uma canção nova» e elas «Porreira, é mesmo porreira [batem palmas sem entusiasmo]. Podemos ouvir agora o «Jumping Jack Flash»? Mas, por fim, entram na canção. Quando chegámos ao final da digressão «Steel Wheels», já gostavam mesmo de algumas músicas.
P. -- Os Stones só existem para fazer digressões e não para fazer discos? Afinal de contas, nunca venderam quantidades astronómicas de álbuns.
R. -- Não, é para as duas coisas, alimentam-se uma à outra. Os Stones nunca venderam enormes quantidades de discos. O mais que vendemos foi do «Some Girls» ou do «Tattoo You», uns sete milhões cada. Tem que se produzir discos, temos que renascer constantemente. Não me importava nada de fazer um disco e de não ir em digressão, mas não gosto de ir numa digressão grande sem ter material novo. As canções são a pedra mais importante, se não tiverem um certo quê todo o edifício é frágil. Podia fazer-se uma digressão nostálgica dos Rolling Stones sem a preocupação de fazer canções novas, mas acho que é importante que as canções novas tenham alguma qualidade.
P. -- Ian Stewart disse uma vez que a única coisa que lhe invejava era ter tido um caso amoroso com Brigitte Bardot. Teve?
R. -- Não, nunca tive. É uma pena. Acho que ela estava disposta, mas eu era muito tímido, para mim ela era uma deusa, não fui capaz de aceitar.
P. -- Os Stones ainda atraem «groupies»? Que idade têm?
R. -- Mas que pergunta! Numa digressão há sempre gente à nossa volta. Acho que ainda existem «groupies», mas não da forma organizada de outros tempos. Havia um grupo nos anos 60, as Plastercasters, que costumavam seguir-nos durante toda a digressão. Se calhar eu não devia falar de «groupies» durante as digressões... acho que já não existem como dantes... se calhar já não me acham atraente...
P. -- Keith falou dos Stones como sendo velhos tocadores de blues que continuam a tocar até à senilidade. Um guitarrista pode sempre sentar-se, mas não consigo imaginar Mick Jagger sem se movimentar em palco. Será que o futuro do grupo depende, em última análise, da sua boa forma e da sua condição física?
R. -- Eu não concordo com essa coisa dos blues antigos. As pessoas não se lembram de Muddy Waters no auge -- felizmente, até nós somos novos demais para nos lembrarmos que ele era uma bomba sexual em palco. Há uma peça sobre o Muddy numa dança muito «sexy», do tipo estrela do rock and roll, em Newport, que vai sair brevemente nos CD-ROM dos Stones. Claro que depois ele envelheceu, ficou todo partido em acidentes e teve que sentar-se. Quando fui ver John Lee Hooker pela primeira vez, tinha para aí uns 17 anos, pensei «Uau, é tão velho. Não vai conseguir continuar por muito mais tempo.» E, nessa altura, ele devia ter cerca de 38 anos. E ainda continua... e eu também.
Estou sempre um bocado preocupado com o facto de ficar obcecado com a idade. Ou seja, desde que nós consigamos cumprir o que prometemos -- compor, cantar, gravar os discos e actuar -- acho que os Stones podem continuar a mexer. Eric Clapton conta esta piada sobre o seu álbum «Unplugged»: «Acho que vamos continuar a fazer isto muitas vezes no futuro.» Vai chegar uma altura em que não serei capaz de correr de um lado para o outro no palco. Digo sempre «Sim, vou parar»... mas, sabe, estas promessas voltam sempre para nos perseguir.
P. -- Como é que lida com o facto de ser um «ícone da cultura popular», em grande parte fictício? Atrapalha-o quando compõe música nova?
R. -- Claro que compreendo o impacto que os Stones tiveram numa geração, mas não sou historiador social. Interesso-me muito pela história social, mas detesto os mitómanos que se levam muito a sério. Há muitos por aí e são uns chatos. Nos anos 60 e no início dos anos 70 houve uma data de afectação intelectual sobre a cultura popular. A primeira análise musical séria foi sobre os Beatles. Nunca tinha acontecido antes, nunca ninguém fez isso sobre o Elvis. Começou a analisar-se a cultura, a arte e a moda populares. E esse processo nunca mais parou.
A música popular não tem só a ver com música. Está relacionada com uma data de outras coisas -- nas quais assenta. O que estava a passar-se no ano em que saiu, como eram os cortes de cabelo, a moda, a postura. A música popular provou ser uma espécie de ponto focal da expressão da cultura popular. Acho que é dessas coisas que as pessoas se lembram dos anos 50 -- o tipo de sapatos que se usava -- sapatos mata-barata-ao-canto, sapatos com sola de borracha, calças afuniladas, cabelo com brilhantina. E depois, claro, da música e de como se dançava essa música.
Se se estiver envolvido nalguma coisa, seja no que for, como uma marcha sobre Washington contra a guerra do Vietname, ou uma marcha pelos direitos cívicos, não quer ser-se muito objectivo, pensar «isto é um momento cultural e eu faço parte dele». E não se quer ser tão parvo que nem sequer se dê por isso. É óbvio que queremos que digam que fez parte de um momento histórico.
P. -- Pensa-se que a música rock, e a produção dos Stones em particular, captam o espírito da época. Como descreveria o «Zeitgeist» actual?
R. -- Balançando entre o consumismo e o milénio.
P. -- Conseguiu alcançar o êxito?
R. -- Veremos... mas não me ralo muito com isso.
Tradução de Paula Taipas
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