<DOC>
<DOCNO>PUBLICO-19950718-169</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950718-169</DOCID>
<DATE>19950718</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
<AUTHOR>PM</AUTHOR>
<TEXT>
Está frio em Grozni
Paulo Moura
Um rumor bastou para detonar o motim. Uma mulher aos gritos. Juras de vingança. Nesse dia, era o massacre da família Chopanov.
Tudo começou com um rumor que não era um rumor, a correr de boca em boca nas ruas desertas de Grozni. Na aldeia de Prigorotni, nos arredores da capital, os soldados russos, às seis da manhã, terão entrado numa casa e, sem qualquer explicação, mataram toda a família à queima-roupa. O pai, o avô e os três filhos, um dos quais com três anos de idade. Sobreviveu apenas a mãe, que, àquela hora, tinha já saído para vender no mercado.
As ruas estão desertas, embora a cidade esteja cheia de gente. Os tchetchenos preferem esconder-se não se sabe onde, porque os soldados russos têm o dedo leve no gatilho. Desconhece-se quantas dezenas de milhares de tchetchenos já foram mortos e, portanto, não será o assassínio gratuito de mais um ou de mais mil que irá estragar as estatísticas.
As únicas aglomerações humanas visíveis são os pequenos mercados onde mulheres vendem, no chão, pão, peixe seco e Fanta, e, é claro, à porta da sede da Organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), onde decorrem as negociações entre a delegação do Governo russo e a dos rebeldes independentistas tchetchenos, sobre o futuro da república.
A zona está cercada pelos militares. Mas, à entrada, algumas centenas de pessoas juntam-se todos os dias para tentar saber novidades das conversações entre a delegação russa, chefiada por Arkadi Volski, e a tchetchena, encabeçada por Usman Imaiev. Juntam-se ali principalmente para ver os líderes tchetchenos, que vivem refugiados nas montanhas do Cáucaso do Norte desde que as tropas russas tomaram, destruíram e ocuparam a capital tchetchena, há seis meses.
Imaiev, Cherbani Bassaiev, irmão de Chamil Bassaiev, que dirigiu o assalto ao hospital de Budionovsk (que levou ao início das negociações) e outros membros da delegação vêm todos os dias à Grozni ocupada, numa pequena caravana de jipes, com a sua própria segurança, para participar nas negociações.
Hoje, porém, entre a multidão que espera, não é das negociações que se fala. É do rumor sobre a aldeia de Prigorotni. Muitas outras histórias circulam, sobre incursões das tropas russas em casas, durante a noite, sobre assaltos, roubos e assassínios, mas a da família da aldeia de Prigorotni corre com mais insistência, com testemunhas, com pormenores. Como a mãe foi avisada por uma vizinha, correu a casa e encontrou o pai, o marido e os três filhos com os pijamas ensanguentados; como chamou por eles, os abraçou um a um, mas nenhum lhe respondeu, porque todos estavam mortos. Fala-se mesmo de nomes: foi a família Chopanov, agora reduzida a uma mulher sozinha.
Dentro da área reservada para as negociações, há soldados tchetchenos, de camuflado e fita verde na cabeça, armados com metralhadora e lança-granadas, e alguns soldados russos, também fortemente armados. No centro da área restrita está o edifício da OSCE, um dos poucos que se mantém quase intacto em toda a cidade.
De súbito, os portões abrem-se. Saem dois soldados tchetchenos e, atrás deles, Imaiev, Bassaiev e a delegação tchetchena. Como correram as negociações? «Correram mal. As negociações correram muito mal», diz Imaiev ao PÚBLICO, em espanhol, o rosto crispado. E dirige-se quase a correr para o jipe que o espera. Mas diz ainda: «Há um `meeting' agora, junto ao palácio presidencial.»
A caravana dos quatro jipes tchetchenos arranca a toda a velocidade, canos de metralhadoras a sair pelas janelas. Passa pela pequena multidão que os aguarda, a aplaudir, e Bassaiev põe a cabeça de fora para convocar todos os tchetchenos de Grozni para a manifestação que vai começar junto ao palácio presidencial.
O motim
Com uma rapidez inacreditável, milhares de pessoas, vindas não se sabe de onde, começam a afluir à grande praça em ruínas, onde houve outrora o palácio monumental da Presidência da República e, em frente, o palácio do Governo, hoje ambos transformados em esqueletos queimados, com as poucas paredes ainda de pé esburacadas de balas como peneiras.
Está um calor insuportável. O ar está cheio de pó. As pessoas correm de um lado para o outro, tropeçam nos destroços. Ninguém sabe o que se vai passar.
Ouve-se uma mulher aos gritos. Todos olham na direcção de um camião que se aproxima, devagar, vindo da paisagem de escombros. É um camião de caixa aberta, apenas com estrado, sem rebordo, na traseira reservada à carga. Lá em cima há qualquer coisa. Uma forma branca.
Todos afluem ao camião. São cada vez mais. Umas três ou quatro mil pessoas. Desatam aos gritos, os braços no ar. Da forma branca no camião ergue-se um vulto. É uma mulher, vestida de branco, está a gritar a plenos pulmões. Tem uma criança ao colo: o seu filho morto. A seus pés, jaz o marido, o pai, os outros dois filhos, de pijama, os rostos e os pés brancos. O camião pára. A mulher ergue o filho, cuja cabeça e braços pendem para trás, como se fosse simplesmente uma criança a dormir.
A multidão entra em histeria. Atropela-se para chegar ao camião, para tocar nos cadáveres, na mulher, acariciar a criança, tocar nos seus pés nus.
O camião arranca e o cortejo segue atrás, as mulheres a chorar, todos aos gritos de «Alá Akbar». Pessoas que vinham em autocarros saem e juntam-se à manifestação. Os trabalhadores das obras de reconstrução, que começaram nalguns lugares, largam tudo e juntam-se também. Mulheres desmaiam com a emoção e o calor. Por vezes, sopra uma brisa ligeira e quente que traz o cheiro dos cadáveres.
Os tchetchenos passam pelos tanques cheios de soldados russos e gritam: «Assassinos» e «Abaixo a ocupação». «É preciso vingança», diz-nos um rapaz, o suor a correr-lhe pelo rosto escuro. «É preciso matar todos os russos.»
Outro homem, de uns 60 anos, conta-nos: «A mim, revistaram-me a casa, há dias. Encontraram um coldre velho de uma arma, que eu usei quando trabalhei na Polícia, e, sem mais explicações, encostaram a uma parede o meu filho, que tinha 28 anos, e fuzilaram-no. Nunca poderei perdoar.»
Uma mulher de véu na cabeça diz: «É isto todos os dias. Querem matar-nos um a um. Se temos de morrer, que seja agora, todos juntos.»
O cortejo dirige-se para a área das negociações. À passagem pelos tanques e blindados russos, alguns homens tchetchenos tentam agredir os soldados. Os russos riem, afastam-nos com pontapés, acariciam as metralhadoras.
Os tiros
Algumas pessoas encontram elementos da milícia tchetchena pró-russa e agridem-nos. Soldados independentistas tchetchenos, de fita verde na cabeça, que surgem também entre a multidão, tentam em vão manter a ordem. Vê-se tanques russos a surgir de todo o lado.
De repente, soam tiros. Ninguém parece reparar, habituados que estão ao som das metralhadoras. Os tiros continuam, vindos não se percebe de onde, e atingem um rapaz de uns 12 anos, que é levado para um carro, a espernear e a gritar. Parecia um ferimento ligeiro mas, pouco depois, veio a saber-se que morreu. Entre os civis tchetchenos, há homens com metralhadoras, granadas de mão, lança-bombas.
O cortejo chega por fim ao local das negociações. O líder tchetcheno Imaiev diz ao PÚBLICO: «As negociações terminaram. Estão interrompidas até que as autoridades de ocupação russa identifiquem e fuzilem os soldados que cometeram este crime.» Acrescenta: «Não cremos que isto tenha sido uma provocação para pôr termo às negociações, pela simples razão de que assassínios como este ocorrem todos os dias.»
O filho contra o peito
Depois sobe para o camião dos mortos, levanta nos braços a criança assassinada e fala à multidão. Explica, em língua tchetchena, que esperariam ali até que a delegação russa viesse falar com eles e prometesse abrir um inquérito para castigar os culpados.
Todos acalmam. Organizam cordões, distribuem água, esperam, horas a fio. A delegação negocial russa, chefiada por Volski, vem por fim, entre apupos, mas protegida pelos soldados tchetchenos. Conversa durante horas, à porta fechada, com a delegação tchetchena. Ao fim do dia, Imaiev anuncia a promessa da delegação dos ocupantes: vai ser feito um inquérito. «Podemos enterrar os nossos mortos», conclui.
Ninguém acredita. Mais tarde, um comunicado do Exército russo em Grozni viria a anunciar o resultado do inquérito: foi o próprio líder dos rebeldes tchetchenos nas montanhas, Dudaiev, quem mandou matar a família de Prigorotni, para pôr a população contra os russos.
Mas os mortos, entre os muçulmanos, devem ser sepultados antes do pôr do Sol do dia em que morreram. Por isso, a multidão, aos poucos, dispersa. Os Chopanov no seu camião, os outros a pé, entre o pó e as ruínas, sob uma temperatura de mais de 40 graus.
A senhora Chopanov aperta o filho contra o peito, suado sob o sol abrasador, quando o camião arranca em direcção ao cemitério. E há em toda a gente a mesma vontade de aconchegar um filho contra o peito. Está frio em Grozni.
</TEXT>
</DOC>