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<DOCNO>PUBLICO-19950726-141</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950726-141</DOCID>
<DATE>19950726</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>AMS</AUTHOR>
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A carreira é longa e sem paralelo presente no campo da ópera, género que Solti dirige há 50 anos -- uma carreira com forte idiossincrasia mas também com grandes metamorfoses, nos tempos escolhidos, no desenvolvimento de trabalho de estúdio e depois na preferência pela gravação ao vivo, no convívio com grandes vozes wagnerianas e verdianas ou agora na intuição que teve das possibilidades de uma cantora quase desconhecida como Angela Gheorghiu.
PÚBLICO -- Porque é que só agora, depois de tantos anos de carreira como maestro, dirigiu «La Traviata»?
GEORG SOLTI -- Foi a primeira vez que o fiz numa realização cénica, mas já antes a tinha dirigido numa interpretação para a rádio, em Munique, em 1950 ou 51, portanto, há mais de 40 anos. Para minha vergonha, foi uma execução com os cortes habituais; desta vez, não: todas as notas foram tocadas.
P. -- E nenhuma acrescentada.
R. -- Não. Gostei imenso de trabalhar com este elenco. A rapariga [Angela Gheorghiu] é uma «traviata» tão natural! Ela é maravilhosa! Mas eu não quero dirigir a obra muito mais vezes -- desde Novembro, já foram umas vinte récitas e isso basta!
O Verdi que falta
P. -- Para além da específica surpresa que é ouvi-lo dirigir esta ópera, há uma outra implicada, pois, dentro do reportório verdiano, o maestro tem sempre dirigido, ou apenas dirigido, obras mais tardias.
R. -- Sim. Dirigi muitas vezes «Falstaff», que continua a ser a ópera de Verdi que prefiro. «Otello» também.
P. -- E «Simão Boccanegra», «Um Baile de Máscaras», «Don Carlo»...
R. -- E «Aida», embora a tenha dirigido há já muitos anos.
P. -- Mas da qual fez uma magnífica gravação.
R. -- Tinha comigo a grande intérprete de Aida nesse tempo, Leontyne Price, o maravilhoso Jon Vickers, um grande elenco, com Robert Merril e Rita Gorr. Mas já foi há muito tempo. Nessa altura [1962], eu tinha dirigido muitas vezes «Aida» em duas temporadas do MET [Metropolitan Opera House de Nova Iorque]. Depois, nunca mais a quis ouvir.
P. -- Quando, aos 82 anos, dirige pela primeira vez uma produção da «Traviata», pode-se perguntar-lhe: ainda há óperas -- e, concretamente, óperas de Verdi -- que nunca tenha interpretado e ainda o deseje fazer?
R. -- Na minha carreira, dirigi mais de 50 óperas! Das de Verdi, há duas que faltam, «Macbeth» e «Trovatore». Quem sabe? Pode ser que ainda suceda! Para qualquer delas é muito difícil reunir um elenco e isso faz-me hesitar. Um «Otello» ou um «Falstaff» que corram mal ainda são obras maravilhosas, mas um mau «Trovatore» é mesmo mau.
O estúdio e o palco
P. -- Este disco (e vídeo) foi gravado «ao vivo». Sucede que o maestro fez uma dupla bastante importante para a história do disco, tendo ao seu lado como engenheiro de som John Culshaw. Conseguiram um extraordinário desenvolvimento da gravação em estúdio, com a amplitude espectacular do chamado «sonicstage». Tanto mais por isso, não deixa de ser uma surpresa que um maestro tão associado com o trabalho de estúdio agora faça gravações «ao vivo», como esta.
R. -- Não é uma surpresa, é uma consequência natural. Fechei o círculo. Comecei por gravar esse grande ciclo de óperas em estúdio, com John Culshaw, começando com o «Tristão» e «O Anel». Nessa altura, nos discos de Wagner, quase só se ouviam os cantores, não a orquestra (agora, passa-se o erro oposto: só se ouve a orquestra, não as vozes). Lentamente, fomos trabalhando em estúdio e apercebemo-nos de que, com cantores e uma orquestra de primeira qualidade, não éramos obrigados a gravar extractos sucessivos, podíamos gravar de seguida um acto inteiro, como se estivéssemos em palco. E assim as gravações tornaram-se muitas mais «vivas» e «atmosféricas». Muito lentamente, fui mudando -- ainda faço gravações de estúdio, mas não muitas.
P. -- Mas, no caso particular desta produção, o «live» foi também uma escolha estética derivada da sua concepção da obra e da sua relação com os cantores?
R. -- Sim. Não acredito que se possa obter em estúdio a emoção de «La Traviata»; nunca seria tão bom como este disco. Gravámos três representações e, ouvindo atentamente, pudemos seleccionar os melhores momentos. Não tínhamos necessidade de ir para um estúdio. Há outras questões que não se podem excluir -- por exemplo, se há um contraponto muito complicado, que é necessário tornar claro e pode justificar o estúdio --, mas, quando a emoção é o mais importante, não é necessário. Hoje, quando se trabalha com as melhores orquestras do mundo, o estúdio não é necessário.
Histórias de maestros
P. -- Quando, há três anos, ouviu pela primeira vez Angela Gheorghiu, na altura cantando Mimi de «La Bohème», achou a voz dela demasiado «pequena» para cantar «La Traviata»...
R. -- Entretanto. na voz dela houve mudanças de amplitude e de «coloratura». Mimi não é um papel muito agudo, a Traviata é. Decidi correr o risco. Quando cheguei para o primeiro ensaio, vi que a escolha tinha sido acertada.
P. -- Trabalhou com grandes cantores wagnerianos, Kristian Flagstad, Brigit Nilson, Hans Hotter ou Wolfgang Windgassen -- vozes para as quais hoje não há paralelo -- e, entretanto, empenha-se a fazer uma gravação como uma cantora jovem como Angela Gheorghiu. Qual é a sua apreciação na evolução da direcção musical, tanto mais tendo a imagem pública de ser «o grande veterano»?
R. -- Honestamente, não penso que haja um declínio. Quando comecei, ouvi muitas vezes Toscanini, Furtwängler ou Bruno Walter. E, nessa altura, o que se dizia? «Ah! deviam ter ouvido Mahler ou Nikisch!». Depois, houve Karajan, Bernstein e eu próprio (que, felizmente, ainda estou vivo) e devem ter dito: «Ah! se tivessem ouvido Toscanini ou Furtwängler!». Mas hoje há tantos jovens talentos, mais que alguma vez antes. Quando eu morrer, vão dizer que eu é que era o grande! Ainda bem se o disserem [ri] mas, absolutamente, não é verdade.
Não gosto de ser catalogado
P. -- Mas, independentemente de uma ideia de declínio, acha que há uma evolução?
R. -- A tendência é para ser muito mais sóbrio. Não estou agora a falar de mim, mas provavelmente nunca depois de Toscanini a precisão foi tão importante como hoje.
P. -- Mas até Toscanini é um bom exemplo, não só porque o maestro foi assistente dele como também hoje podemos comparar as gravações de «La Traviata» feitas por um e outro. Sem entrar em detalhes, mas apenas numa base factual, há cortes e acrescentos de notas que ele permitiu e o maestro não.
R. -- Acredito firmemente que a partitura é um manuscrito sagrado. Não sou tão estúpido que me pense melhor que o compositor. Não! No tempo de Toscanini, ainda havia essa diferença entre dirigir e interpretar, interpretar como se fosse um compositor. No caso de «La Traviata», ele fez alguns cortes. Porquê não sei, nunca tive a oportunidade de o discutir com ele. Ele conheceu Verdi e provavelmente diria que esses eram os cortes que Verdi queria [ri]. Mesmo que isso fosse verdade, eu não me importava. Não há um único momento na «Traviata» que eu ache demasiado longo. O mesmo se passa com «Otello». Se se acha que uma ópera tem momentos dispensáveis, o melhor é não a dirigir.
Mas Toscanini era um intérprete tão escrupuloso! O curioso é que, à medida que ia ficando mais velho, as suas interpretações foram sendo mais rápidas -- enquanto as de Furtwängler se tornavam mais lentas. São dois modos de ir mudando com a idade.
P. -- E o maestro?
R. -- Acho que agora dirijo mais rapidamente.
P. -- Mas não na «Traviata».
R. -- Porque segui escrupulosamente as indicações metronómicas de Verdi.
P. -- Até pelo que disse da sua própria evolução, o que responde se se lhe disser que, habituados em si a uma tendência mais «épica» de interpretação, mais surpreendidos ficamos com uma direcção tão «intimista» da «Traviata»?
R. -- Acho que quanto mais vezes ouvir o disco mais fica «íntimo» dele! Mais a sério: não gosto de ser catalogado, as interpretações dependem das partituras.
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