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<DOCNO>PUBLICO-19950807-102</DOCNO>
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<DATE>19950807</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
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A'haroni: «Por minha causa o senhor é órfão»
Eichmann: «O meu pai mereceu o castigo»
Zvi A'haroni, o ex-agente da Mossad, hoje com 74 anos de idade, que participou no rapto de Adolph Eichmann para Israel, encontra-se com o filho do criminoso de guerra nazi em Londres.
Texto Gad Shimron*
Um dos olhos do homem mais novo treme nervosamente antes de apertar a mão do homem mais idoso. «Ricardo Eichmann», apresenta-se, inclinando ligeiramente a cabeça como é usual na Alemanha.
«Zvi A'haroni», diz o o homem mais velho, observando o indivíduo bem parecido de 40 anos de idade que acabava de se apresentar. Olhos de um azul acinzentado, cabelo negro, covinha no centro do queixo à Kirk Douglas, delgado, com cerca de 1,80m de altura, vestia calças claras e casaco escuro condizentes com um professor jovem e muito popular.
«Quero que saiba que este encontro me é extremamente penoso, pois fui o principal responsável pelo rapto do seu pai, Adolph Eichmann, para Israel e, por conseguinte, directamente responsável pelo facto de o senhor ter ficado órfão», diz A'haroni. O olho de Ricardo recomeça a tremer. Vê-se que está apreensivo, talvez mesmo um pouco ansioso, com as palavras amargas que poderão seguir-se. «Não teve certamente uma infância fácil, e apraz-me ver que, apesar disso, conseguiu vencer na vida. Disseram-me que é professor universitário de arqueologia.»
«Estou satisfeito por ouvi-lo dizer isso», responde Ricardo serenamente. O tremor da pálpebra desapareceu para dar lugar a um pestanejar rápido, semelhante ao movimento do obturador das máquinas fotográficas modernas. Era como se ele estivesse a tentar registar esta ocasião no seu espírito -- um instante no átrio do Hotel Hilton no aeroporto de Heathrow. Se não estou em erro, penso mesmo que o ouvi soltar um suspiro de alívio.
À nossa volta, prosseguia o movimento característico de um átrio de hotel elegante. Pessoas a falarem alto, telefones celulares a tocarem nervosamente e encontros de toda a espécie a terem lugar -- negócios internacionais de droga ou uma família de turistas a planear a sua expedição matinal a Londres. Poucos devem ter sido os que repararam neste extraordinário encontro entre o jovem alemão, filho de Adolph Eichmann, e o israelita de 74 anos de idade e ex-membro da Mossad, que raptara o pai de Ricardo em Maio de 1966, na Rua Garibaldi em Buenos Aires.
«Suponho que nunca lhe contaram isto, mas imediatamente a seguir ao rapto, tanto Raffi Eitan, que dirigia esta operação, como eu, sugerimos a Iser Har'el que Israel deveria ajudar a sua família. `Deixámos uma mulher com quatro crianças numa situação difícil', dissemos a Har'el. À data, o senhor tinha seis anos. `Isto constitui um problema moral e devemos provar, quer ao mundo quer a nós próprios, que somos humanos.' Mas Iser não fazia a mínima ideia do que estávamos a falar. `Zum toyfel', murmurou em `yiddish', `que vão para o diabo. O que é que nós temos a ver com isso?' Em minha opinião, devíamos ter feito qualquer coisa, e por isso estou muito satisfeito por ver que conseguiu ultrapassar as dificuldades e ser bem sucedido na vida.»
«Estou imensamente curioso em encontrar-me com esse tal A'haroni», afirmara Ricardo Eichmann no avião que nos trazia da Alemanha para Londres. «Tenho o pressentimento de que isto vai encerrar uma espécie de círculo relativamente ao meu pai.» Foi esta a primeira vez que o ouvi usar as palavras «o meu pai» juntas. Durante as longas conversas que tivéramos, ele sempre fizera um esforço para evitar a palavra «pai». Era o pronome «ele» nas suas diversas formas em alemão -- que, aliás, não são poucas -- que surgia por sistema. A combinação «o meu pai» não constava do dicionário de Ricardo.
«Não sinto nada em relação a ele. Era uma pessoa que estava muito distante. Só me lembro de duas ocasiões na minha infância. Numa delas, levou-me numa viagem de autocarro e, na outra, deu-me uma `tablette' de chocolate e abraçou-me. Esqueci-me de tudo o mais. Desvaneceu-se. Sempre invejei os outros miúdos que se podiam vangloriar de os pais terem morrido num acidente ou de qualquer doença, enquanto eu não podia dizer nada», afirmou, esfarrapando o guardanapo de papel com que ficara do pequeno-almoço no avião. Estou certo de que, bem no fundo do seu coração, ele amaldiçoava os novos regulamentos da Lufthansa que proíbem que se fume nos voos continentais.
«Houve uma altura em que quis ser piloto», conta-me. «Alistei-me no exército alemão, passei todos os exames e testes físicos e comecei a minha formação para piloto. Na Alemanha, é preciso primeiro ser-se oficial antes de começar as lições de voo. Mas fui-me abaixo. Houve um dia em que tivemos um exercício de simulação de guerra química. Puseram-nos então numa câmara de gás. Faz alguma ideia de como é que os soldados alemães chamavam a essa câmara de gás? A sala Eichmann. Quando me perguntaram por que razão eu queria desistir do curso, falei-lhes acerca desse incidente. Como é óbvio, dispensaram-me.»
«Por que razão não mudou o seu nome quando casou, há dez anos? Podia ter adoptado o apelido da sua mulher. Não é nada que não se faça na Alemanha hoje em dia» «Não quis fazer isso. Seria como que negar uma realidade. Eichmann é o meu apelido. Não posso fazer nada contra isso.»
Mas pode adoptar o hábito de se identificar em voz muito baixa, por exemplo. «Tem uma mensagem do dr. Eichenberg», dissera-me a telefonista do pequeno Hotel Krone no centro de Tobingen, uma pitoresca cidade universitária. Não me surpreendeu que ela tivesse pronunciado o nome incorrectamente. Eu próprio tivera dificuldade em percebê-lo quando telefonara pela primeira vez para casa de Ricardo. Ele tinha adoptado esta forma quase silenciosa de pronunciar o seu nome, de modo que apenas as pessoas que o conheciam conseguiam apreendê-lo correctamente.
«Em criança perguntava frequentemente à minha mãe coisas sobre a nossa família -- sobre o que acontecera. Mas ela esquivava-se sempre ou, pura e simplesmente, não respondia. Entretanto acabei por deixar de fazer perguntas e continuei a viver com os pontos de interrogação. Nunca falámos sobre o passado, era como se ele fosse um buraco negro», conta Ricardo. Quando sobrevoávamos a Bélgica, a dez mil metros de altitude, comecei a falar-lhe sobre os sobreviventes do Holocausto e o fardo que eles têm de carregar. Disse-lhe que muitos deles haviam passado por experiências semelhantes de silêncio pesado na sua juventude. «Compreendo perfeitamente aquilo que sentiam», murmurou o filho do homem da gaiola de vidro que, como consta no processo número 40/61, do Estado de Israel «versus» Adolph Eichmann, foi levado a julgamento -- 15 anos depois da guerra -- devido à sua participação no crime mais hediondo jamais cometido na história da humanidade.
«Quando eu era miúdo, sempre que alguém era simpático para comigo, pensava: deve ser nazi», diz Ricardo. «E quando alguém era hostil, associava de imediato à mesma coisa: será que a família dele sofreu na guerra? Terá sido ele próprio uma das vítimas? Foi por isso que, em criança, sempre preferi jogos de imaginação. Um cavaleiro, um herói romântico da Idade Média, um galante soldado romano. Qualquer coisa do passado. Nada que se relacionasse com o presente. Na escola, nunca ouvi falar sobre o Holocausto. É óbvio que nos devem ter ensinado isso mas não me lembro de rigorosamente nada. Talvez eu não tivesse estado presente nessas aulas, talvez tenha estado doente na altura, não sei. Foi só quando tinha 13 ou 15 anos que comecei a ouvir histórias sobre os nazis e Eichmann, mas nunca fui muito ao fundo da questão. O silêncio da minha mãe só vinha reforçar a minha ideia de que tínhamos algo a esconder, e fez com que eu sempre optasse pela discrição -- nunca sobressair no meio da multidão.»
Ricardo sorri à hospedeira do avião, uma jovem e bonita loura que lhe retribui o sorriso. O filho de Adolph Eichmann é um homem bem parecido e, durante as longas horas que passei com ele, reparei nos olhares que as mulheres lhe lançavam. Mas constatei que isso o deixava frio e distante. Somente com esta hospedeira as coisas pareciam ser diferentes. «Ela faz-me lembrar a minha mulher», afirma e torna a sorrir. Um sorriso caloroso e muito terno.
«A sua mulher não se importa que esteja a dar aulas em Tobingen, tão longe de casa, e com tantas jovens e lindas estudantes à volta?», pergunto. «A minha mulher não tem razões para ficar preocupada e ela sabe-o. Ouvi realmente dizer que há lá estudantes muito bonitas mas, por qualquer razão, não vão para arqueologia», responde a rir.
A sua recente nomeação para leccionar arqueologia na Universidade de Tobingen forçou Eichmann -- o investigador das civilizações antigas do Médio Oriente -- a abandonar o anonimato, a avançar para as luzes da ribalta e a enfrentar os meios de comunicação afirmando: «Sou filho de Adolph Eichmann.» «Devia isso aos meus estudantes. Eles tinham o direito de saber quem eu era», explica.
«Os seus trabalhos levam-no a todo o Médio Oriente. Nunca se sentiu interessado em visitar Israel?» «Tinha receio do modo como me tratariam aí. No final de contas, tenho este apelido.» Traduzi-lhe a frase bíblica: «Os pais comeram uvas amargas, e os dentes dos filhos são afiados.» Ele sorriu mas não fez qualquer comentário.
O empregado de hotel indiano que foi enviado ao quarto 579 com as sanduíches que pedíramos pelo serviço de quartos viu um grupo de homens sentados em torno de uma mesa, conversando com um ar descontraído, quase familiar.
«Este é o troço de linha férrea onde vigiávamos o seu pai», explica Zvi A'haroni a Ricardo, apontando para a fotografia panorâmica da área de San Fernando. «Constatámos que ele regressava a casa sempre no autocarro das 19h45. Por acaso, no dia que tínhamos marcado para o rapto, ele atrasou-se.»
A tensão que se podia sentir quando os dois homens se tinham encontrado desvanecera-se. Ambos -- o raptor e o filho -- quase pareciam membros da mesma família que não se viam há bastantes anos e que estavam agora a sacudir a poeira das recordações com o auxílio de fotografias.
«Eu pensava que a casa era muito maior. A minha mãe disse-me que eu costumava sentar-me na cerca do jardim todos os fins de tarde à espera que ele regressasse. Era aí que eu estava no dia em que foi raptado, mas ele nunca chegou a aparecer», recorda Ricardo. «Desculpe-me se o vou desapontar e destruir as suas recordações de infância, mas isso não está inteiramente correcto», afirma A'haroni -- que nasceu em Frankfurt -- num alemão fluente. «Observámo-lo durante vários dias. Vi-o brincar frequentemente no pátio, mas a sua mãe costumava chamá-lo para dentro de casa muito antes de o seu pai chegar a casa do trabalho.»
«Tinha imensos animais com que adorava brincar no jardim», diz Ricardo, mas A'haroni sente novamente o dever de rectificar as coisas, com base nas informações que obtivera durante o período de vigilância. «Peço-lhe novamente que me desculpe, mas não havia animais. Tinham, isso sim, uma horta.» «Se calhar enganei-me», murmura Ricardo. «Isso dos gatos e dos cães deve ter sido mais tarde.»
O rapto de Adolph Eichmann, o criminoso de guerra nazi, pelos agentes dos serviços secretos israelitas inflamou a imaginação dos meios de comunicação e firmou a reputação da Mossad israelita como uma das mais eficazes organizações de serviços secretos do mundo. Houve muitos que tentaram aproveitar-se deste tremendo sucesso, incluindo Iser Har'el -- à data director da Mossad e que supervisionara pessoalmente a operação --, que, posteriormente, vendeu milhares de exemplares do seu livro «A Casa da Rua Garibaldi».
Zvi A'haroni esteve envolvido em todas as fases da operação. Ao longo da Primavera de 1960, enquanto director da unidade de investigadores dos GSS (Serviços Gerais de Segurança), foi enviado por Iser Har'el para a Argentina. A sua missão era a de investigar a veracidade de uma informação recebida de um idoso judeu cego de nome Herman Luther. «A minha filha namora com um rapaz chamado Nick Eichmann», fora o que ele transmitira aos israelitas. «Ele é alemão, com tendências neonazis e vive em Chackabuko.» Fornecera, para além disso, a morada exacta.
A'haroni chegou à Argentina cerca de um mês depois de os Eichmann se terem mudado de Chackabuko para a Rua Garibaldi. Com o apoio de voluntários da comunidade judaica, descobriu a nova morada, fotografou clandestinamente Eichmann e procedeu à sua identificação. Depois de isto ter sido feito, os raptores, chefiados por Raffi Eitan, foram enviados para a Argentina. Entre eles, encontravam-se Avraham Shalom, posteriormente director dos GSS, Zvika Malchin, Shalom Dani, Ephraim Ilani, Yehudit Nessiyahu e ainda mais três -- um deles médico. Foi A'haroni que conduziu o carro da fuga, interrogou Eichmann durante o período que passaram no esconderijo, um apartamento em Buenos Aires, e o acompanhou no voo para Israel a bordo do avião da El-Al especialmente fretado para esse fim.
«Conhecíamos a vossa morada em Chackabuko havia já muito tempo, mas Iser Har'el não acreditara nas informações de Luther. Foi por essa razão que já não vos apanhámos aí», explicou A'haroni a Ricardo. «Foi o meu pai que construiu a casa da Rua Garibaldi», disse Ricardo, e subitamente reparei que, ao longo da última meia hora, isto é, desde o início desta reunião, ele utilizava o termo «pai» com mais facilidade. «As pessoas que lhe venderam o lote de terreno enganaram-no. Eram uns escroques. Tinham falado ao meu pai num plano para construir um bairro totalmente novo em San Fernando, com uma escola, um posto de polícia e estradas pavimentadas. Mas não passava de um embuste. A nossa casa estava isolada e não tínhamos electricidade.»
«Não faz ideia de como isso foi conveniente para nós quando finalmente decidimos raptar o seu pai», sorri A'haroni. «Pode imaginar como seria complicado se tivéssemos de o apanhar numa área tão densamente povoada como era Chackabuko. Na altura em que o prendemos, o seu pai gritou. Tivemos sorte em não haver ninguém nas imediações.»
Ricardo segue a narrativa de A'haroni muito atentamente, tentando não perder uma palavra.
«Conseguimos metê-lo dentro do carro após uma breve luta e deitá-lo de costas no chão», prossegue A'haroni. «Começámos então a dirigirmo-nos para o apartamento. Eu tinha um passaporte diplomático austríaco de modo a que, se a polícia nos mandasse parar, pudéssemos invocar imunidade diplomática. Mas nada aconteceu no caminho. Disse ao seu pai, em alemão, que não lhe faríamos mal. Ele não respondeu. Repeti em espanhol o que dissera, mas ele tornou a não responder. Ouvimos então uma voz fraca vinda da parte de trás do automóvel que disse em alemão: `Já cheguei a acordo com o meu destino.'»
Um músculo na face de Ricardo estremeceu nervosamente.
«Nessa mesma noite certificámo-nos de que ele era o Eichmann que procurávamos. O seu pai era um indivíduo estranho mas, no entanto, chegámos a apreciarmo-nos mutuamente», afirmou A'haroni. O músculo na face de Ricardo, que entretanto se acalmara, recomeçou a tremer.
«Não creio que ele odiasse os judeus. Era um funcionário público devotado com a disciplina de um oficial alemão. Tinha ordens para aniquilar judeus e executou a sua tarefa cabalmente. Repare, isto são palavras do procurador do Ministério Público, Gideon Hausner. Ele contou que o Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão tinha pedido a Eichmann para que este se encarregasse de 30 mil judeus de outras nacionalidades, destinados a serem trocados por cidadãos alemães que se encontravam desamparados nos Estados Unidos. O seu pai recusou. Ele mantinha-se fiel às ordens que recebera. Gostaria de ler os argumentos da acusação?», pergunta A'haroni. Ricardo acena afirmativamente: «Sim, seria interessante.»
A'haroni dirige as operações. Ricardo parece constrangido. Está a ouvir mas não encontra as palavras para formular as questões certas, as que o devem atormentar há anos. «Um rapaz muito simpático», confidencia-me A'haroni quando Ricardo nos deixa por alguns minutos para ir à casa de banho. «Sinto que hoje estou a encerrar um ciclo.»
Ricardo regressa e A'haroni prossegue: «Durante o interrogatório, o seu pai agiu como um verdadeiro oficial alemão. Não tentou esconder o que quer que fosse e colaborou totalmente connosco. Por exemplo, deu-me a sua palavra de honra de que não tentaria escapar mas, mesmo assim, algemámos um dos seus pés à cama. Quando o vestimos com o uniforme da El-Al, antes de entrarmos no avião, certificámo-nos de que não tinha camisa. Tínhamos de ter a certeza de que, caso fosse necessário, o médico conseguiria injectar-lhe um sedativo tão rapidamente quanto possível. O seu pai compreendeu isso.» A'haroni mostra a Ricardo uma fotografia de Adolph Eichmann vestido com o uniforme da El-Al e com os olhos protegidos por óculos escuros de motociclista.
«O consultor legal do Estado de Israel pedira-me que fizesse Eichmann assinar um documento dizendo que tinha vindo para Israel de sua própria e livre vontade», prossegue A'haroni. «E ele assinou?», espanta-se Ricardo. «O seu pai não sabia que estávamos à espera de um avião. Ele pensou que, se se recusasse a assinar, ficaria preso naquela casa meses a fio até o fazer», explica A'haroni. «Porém, creio que ele se sentia aliviado por tudo aquilo ter chegado ao fim. Quando a guerra acabara, ele iniciara uma fuga que o levaria até à Argentina. Bem no fundo do coração, devia saber que, mais cedo ou mais tarde, tudo isso acabaria. Ele estava cansado do tipo de vida que levava e penso que sentiu alívio por tudo ter terminado. Não se esqueça de que, durante o julgamento, o seu pai continuava a insistir em que apenas tinha cumprido ordens, e que provavelmente esperava ainda que se desse um ponto de viragem no processo legal. Convidaram-me para assistir à sua execução, mas, felizmente, encontrava-me ausente no estrangeiro nessa altura. De todos os lugares do mundo, aconteceu que, nesse dia específico, me encontrava na Argentina. Custa-me a acreditar que pensassem que eu iria vê-lo ser enforcado. Sabe que Eichmann foi a única pessoa a ter sido executada em Israel?»
«Sim», pronuncia Ricardo rapidamente. «É-me difícil referir-me à sua sentença de morte. Tendo em consideração os seus crimes, parece uma punição adequada. Interrogo-me sobre o que teria acontecido se ele tivesse sido perdoado e ficado preso. Teria ele tomado consciência, anos depois, do que fizera? Sabe que isso acontece a pessoas mais velhas.»
«Agora que se encontrou frente a frente com o homem que raptou o seu pai, como é que se sente?», pergunto a Ricardo, numa tentativa de o desviar desses pensamentos. Mas Ricardo permanece tenso. Após tantos anos a reprimir os seus sentimentos, ele não encontra forma de se descontrair. «Não tenho quaisquer sentimentos em relação ao meu pai. Nem emoções. Não encontro palavras para descrever as coisas terríveis que ele fez durante a guerra. Não há, pura e simplesmente, palavras para isso. Contudo, é estranho estar sentado em frente a um homem, que nunca vi na minha vida, e que sabe mais acerca de mim e da minha família do que muitos dos meus parentes e amigos. Irrita-me ouvir falar deste código militar que conduziu a tantas desgraças.»
«Durante o interrogatório, Adolph Eichmann alguma vez mencionou os seus filhos?», perguntei, e vi que Ricardo prestava subitamente atenção. «Toquei no assunto», replica A'haroni. «Disse a Eichmann que, se ele tivesse mudado de apelido, duvidava que alguma vez o conseguíssemos encontrar. Só porque o seu filho -- aquele que cortejava a filha de Herman Luther -- se apresentara como Nick Eichmann é que as nossas suspeitas se haviam levantado. Ao que Eichmann retorquiu -- e desculpe-me, dr. Eichmann, se lhe disser que não considero esta resposta como a mais inteligente -- `Como é que eu posso esperar que os meus filhos mintam acerca do seu nome?'»
Ricardo engole em seco.
A'haroni pressente a sua angústia e muda de assunto. «Vera, a sua mãe, ainda vive? Oh, morreu há dois anos. Que idade é que tinha? 84? Bem, já tinha uma certa idade.» Adolph Eichmann nascera em 1906. Segundo os meus cálculos, teria hoje 89 anos.
«Depois do rapto, disseram-me que o meu pai se tinha ido embora», recorda-se Ricardo. «A minha mãe levou-nos para a Alemanha, para uma pequena aldeia não longe de Baden. Horst, o meu irmão mais velho, ficou na Argentina.» «Nunca cheguei a conhecer Horst, o mais velho dos irmãos», diz A'haroni. «Nessa época ele estava fora, era da marinha mercante.»
«Os meus dois outros irmãos, Dieter e Nicholas, eram mais velhos do que eu e compreenderam o que na realidade se estava a passar», disse Ricardo. «Nessa altura correram boatos de que Dieter e Nicholas tentaram organizar uma busca para localizar os raptores», diz A'haroni, tacteando o terreno. «Nunca ouvi falar disso», responde Ricardo, «mas também eu só tinha seis anos.»
«De que é que viviam na Alemanha?», pergunta A'haroni. «A minha mãe tinha uma pequena pensão do Governo alemão, que equivaleria, hoje, a cerca de 800 marcos [cerca de 84 contos]. O nosso tio também nos ajudou um pouco. Mas dois anos mais tarde regressámos à Argentina porque com essa quantia viveríamos melhor lá. Voltámos a morar na casa da Rua Garibaldi. Foi então que eu tive animais», lembra-se Ricardo e sorri. «Horst vive na Argentina e não tenho praticamente qualquer contacto com ele [Horst Eichmann é um nazi convicto]. Dieter e Nicholas vivem confortavelmente na Alemanha e mantemo-nos em contacto. De início ficaram zangados comigo por eu falar com os meios de comunicação. Mas creio que agora compreendem.»
Ricardo é firme no que diz respeito ao direito à privacidade da sua família. Em todas as conversas que tivemos desde que nos encontrámos, a única coisa que permitiu que fosse divulgada era que tinha dois filhos de seis e oito anos de idade, que o acompanham ocasionalmente quando ele toca canções irlandesas no violino e que não sabem nada acerca do avô Eichmann. «São ainda muito novos. Talvez mais tarde. Pouco a pouco.»
«A minha mãe nunca falou do meu pai, do rapto, ou do julgamento», diz Ricardo. «Nem sequer quando regressámos à Alemanha. Creio que, à sua maneira muito especial, pensava que me estava a proteger. Ela tinha imenso orgulho nos meus sucessos académicos e quando, há dez anos, obtive o doutoramento, ficou extremamente satisfeita. Mas a minha infância não foi feliz.»
Também a de A'haroni não o foi. «Recebi um convite para uma reunião de antigos alunos da minha escola primária em Frankfurt», diz a Ricardo. «De início pensei que seria agradável rever alguns antigos condiscípulos. Porém, pensei melhor e decidi não ir. Foi uma experiência terrível ser um rapaz judeu na Alemanha nazi. O que é que eu poderia possivelmente encontrar lá agora? Também recebi algumas cartas de antigos alunos a perguntarem-me como é que era realmente a vida nos anos 30. Respondi que aquilo que mais me magoara fora o facto de, em todos aqueles anos -- até ter acabado a escola e emigrado para Israel --, nenhum aluno nem nenhum professor tivesse alguma vez vindo ter comigo, mesmo privadamente, e dito qualquer coisa como: `A despeito da propaganda nazi, tu és a mesma pessoa que sempre conhecemos -- o mesmo Herman.' Nem um», disse Zvi-Herman muito alto, quase a gritar, fazendo com que Ricardo recuasse na cadeira. O ambiente quase amigável que se vivera até aí deu lugar a uma certa tensão.
«Não é nada parecido com o seu pai», diz A'haroni tentando quebrar o gelo. «Ainda bem», responde Ricardo, «no passado, quando me queriam aborrecer, diziam que eu era parecido com ele.» «Não, não há qualquer semelhança», afirma A'haroni com convicção, após ter olhado para ele longamente através dos óculos. «Sendo um arqueólogo, é capaz de já ter ouvido falar no meu irmão, o professor Yohanan A'haroni.» Ricardo diz que sim, que já ouvira falar nele, mas que não o conhece.
«Será que aqui me arranjariam um saco? Gostava de levar estes restos de comida para o meu cão», diz A'haroni, que, desde há alguns anos, reside numa pequena aldeia no Sul de Inglaterra. Só de pensar que Zvi A'haroni, o caçador de nazis, vai para casa depois deste encontro histórico com um saco de comida para cão faz-me sorrir. A'haroni e Eichmann, ambos apaixonados por animais, apercebem-se do absurdo da situação, sorriem um para o outro e desatam a rir às gargalhadas.
Ricardo, o nosso fotógrafo Roby Castro e eu acompanhámos A'haroni ao táxi que o conduziria à estação de autocarros. Ao despedirem-se, segundos antes de A'haroni desaparecer no táxi com o seu saco de restos para o cão, quase se abraçavam. Quase. O aperto de mão foi extraordinariamente expressivo. «Dê cumprimentos meus a Dieter», conseguiu ainda dizer A'haroni antes de o táxi arrancar.
No avião de regresso à Alemanha quase não falámos um com o outro. «Numa das universidades onde leccionei, havia um indivíduo chamado Adolph Hoffman. O carteiro entregava-me deliberadamente todo o correio que era endereçado a Adolph e isso magoava-me extraordinariamente. Mas isso é algo que nunca mais me acontecerá. Certamente não depois do meu encontro com Herr A'haroni. Tinha a certeza de que o Hilton se encontraria pejado de guarda-costas e de agentes à paisana», diz Ricardo.
«E eu sonhei na noite passada que você puxava de uma pistola e disparava sobre A'haroni», conto-lhe. Ricardo ri: «E afinal não havia guarda-costas nem pistola. Não guardo rancor a Israel pelo que fizeram ao meu pai. E também não tenho nada contra Herr A'haroni. Sinto-me aliviado. Comecei a ter este sentimento logo após a primeira entrevista que dei a um jornal alemão, há cerca de um mês, e desde então ele tem vindo a aumentar a cada nova entrevista. Há dois dias, fui a uma oficina para levar o meu violino a consertar. O nome do dono era Keitel [nome do general alemão que foi fiel a Hitler até ao fim e que, no dia 7 de Maio de 1945, assinou a rendição incondicional da Alemanha nazi no quartel-general de Eisenhower em Reims]. Ele olhou para mim quando lhe disse como me chamava e, pela primeira vez, declarei sem hesitação: `Sim, esse mesmo.' O meu encontro com A'haroni é indiscutivelmente o clímax deste processo de purificação por que estou a passar.»
Quando as luzes de Estugarda se tornaram visíveis através das janelas do avião, Ricardo Eichmann tornou a referir-se ao alívio que sentia. «Ainda vai ter de passar um certo tempo até conseguir absorver e compreender todos os pormenores deste encontro.»
No dia seguinte, telefonou-me de Tobingen a pedir-me que lhe enviasse os argumentos da acusação proferidos pelo acusador público, Gideon Hauser, pois a cópia que lhe tinha sido entregue por A'haroni acabara por ficar na minha pasta. Começa com as seguintes palavras: «Encontro-me aqui hoje perante vós, juízes do Estado de Israel, para acusar Adolph Eichmann. Mas não estou só. Comigo encontram-se seis milhões de acusadores.»
«Não faz ideia de como me sinto aliviado», torna a repetir Ricardo Eichmann. «Compreendo agora que não deverei cometer o mesmo erro da minha mãe. Tenho que dizer aos meus filhos toda a verdade. É errado eles viverem a vida como eu vivi a minha -- na escuridão e com tantas questões sobre o seu avô por responder.»
Faz-se silêncio por um momento. «Mais uma vez, muito obrigado pelos seus esforços. Espero tornar a encontrá-lo.» E, antes de pousar o auscultador, diz em hebraico: «Shalom.»
* exclusivo PÚBLICO/«New York Times»
[Tradução de Maria João Reis]
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