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<DOCNO>PUBLICO-19950815-118</DOCNO>
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<DATE>19950815</DATE>
<CATEGORY>Nacional</CATEGORY>
<AUTHOR>JMF</AUTHOR>
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Goa: A funesta jogada de Salazar
Fernando Dacosta
Na madrugada de 15 de Agosto de 1955, grupos de indianos seguidores de Ghandi, os «satyagrahas», punham-se a caminho, sem armas, em direcção aos territórios de Goa, Damão e Diu. Há muito que, na sequência da libertação da Índia do domínio inglês, as suas incursões se sucediam, se multiplicavam. Dessa vez, porém, as autoridades portuguesas reagiram com grande violência, provocando vários mortos em vários locais. A guerra colonial aprofundava-se na região. Novos incidentes ocorrem nos dias seguintes. Os consulados portugueses em Bombaim e Calcutá são apedrejados por estudantes. A bandeira portuguesa é substituída pela indiana.
Em Lisboa, os jornais enchem páginas com relatos de pormenor e artigos de opinião. Ao contrário do que sucedia em situações do género (guerras, revoltas, manifestações, golpes), a imprensa não tem problemas com a Censura.
Torna-se mesmo visível a sua preocupação em puxar pelo tema, refrescá-lo, avivá-lo a nível político e jornalístico, ideológico e cultural, diplomático e militar. Algo de estranho germina, se congemina por baixo dessa torrente de emoções.
Nehru, primeiro-ministro da União Indiana, sucessor de Ghandi, é proclamado inimigo público e ridicularizado. As suas tentativas de diálogo, de conversações, não obtêm por parte de Lisboa resposta oficial, apenas chacota pública.
«Estamos decididos a resolver a questão pacificamente», repete, enquanto apresenta desculpas pelos ataques aos consulados e faz parar os «satyagrahas». «A história não vai, porém, ficar por aqui», acrescenta. «A história só findará quando o nosso objectivo for alcançado.»
O Parlamento de Nova Déli havia reivindicado, quando da independência do país, a 15 de Agosto de 1947, a posse de Goa, Damão e Diu. «Política, económica e mesmo religiosamente, esses territórios fazem parte da Índia», proclamou.
As tentativas de invasão pacífica iniciam-se pouco depois. E intensificam-se à medida que os esforços diplomáticos falham. A crispação de Nehru leva-o a avisar: «Não sou sistematicamente pacifista.»
Tornar-se vítima
Enigmático, Salazar não só não reforça militarmente Goa, como lhe retira esperanças. «A nossa posição tornou-se meramente simbólica. Não havia defesas. Nem fortificações», evoca o coronel Santos Costa (que não tem nada a ver com o ex-ministro Santos Costa), ali em comissão no início da década de 60.
Chegado da Índia nessa altura, Costa Gomes avisa o presidente do Conselho da existência de concentrações de tropas nas áreas portuguesas. «Propus-lhe», recorda, «a realização de um plebiscito, sob a égide das Nações Unidas, a fim de se evitar uma situação humilhante para o regime. Se tivermos entre seis a dez por cento dos votos já é bom.» E elucidou: «Só um pequeno estrato da população local defende a nossa presença. A língua portuguesa nem sequer figura no ensino primário.»
Salazar contrapõe-lhe: «Isso é muito bonito, mas não temos só a India. Temos África.» O responsável pelo Governo percebe que o problema colonial entrou em derrapagem. A nível externo as pressões das grandes potências intensificam-se, a nível interno as discordâncias afirmam-se. O cerco desenha-se com nitidez.
Ao contrário dos que o rodeiam, Salazar não acredita no pacifismo de Nehru. Nem acredita que Portugal possa resistir a uma invasão da Índia. Vai ter de introduzir mudanças para que o equilíbrio não se desfaça.
Começa a tecer uma complexa urdidura de comprometimento de Nehru. Não respondendo às propostas de diálogo, tenta fazê-lo irritar-se; fomentando artigos na imprensa internacional, tenta fazê-lo cair no descrédito.
A experiência mostrara-lhe a importância da comunicação social. Utiliza-a em força. Cada ameaça, cada incursão indiana tornam-se pretexto para artigos, para reportagens, para entrevistas, para encómios à política do Estado Novo. Salazar sabe que a opinião pública está do lado das vítimas, não dos algozes, do lado dos perseguidos, não dos perseguidores. Joga, então, fundo no «marketing» de fazer-se passar por vítima, por perseguido.
A estratégia do regime assentava no pressuposto de que um terceiro conflito mundial iria eclodir nos anos 60. Só restava por isso a Portugal -- e na senda do que fizera durante a II Guerra -- resistir, para poder chegar, com todo o seu império incólume, à nova ordem saída da hecatombe que se avizinhava. Os ventos mudariam então, acreditava-se, a nosso favor.
«Toda a organização militar portuguesa estava a ser preparada para uma terceira guerra. Havia planos», pormenoriza o marechal Costa Gomes, «para criar uma divisão especial em Angola e Moçambique, de pretos e brancos, destinada a actuar na Europa. As pessoas acreditavam na inevitabilidade do conflito, mas eu não. E por uma razão: é que já existia a bomba atómica, ou seja, não havia hipótese de ninguém sair dele vencedor. A reconversão das nossas Forças Armadas às exigências da guerrilha africana foi iniciada por mim. A nossa preocupação não era matar as populações, mas recuperá-las.»
«Pacifista de duas caras»
Franco Nogueira e Adriano Moreira, homens não filiados na União Nacional, são chamados para as pastas dos Negócios Estrangeiros e do Ultramar, respectivamente. Vassalo e Silva é nomeado governador da Índia. Novos estilos, novas linguagens surgem.
Salazar informa os seus embaixadores de que devem abrir-se aos jornalistas estrangeiros. Referências elogiosas à sua política saem nos principais matutinos de Paris, Madrid, Londres, Roma, Nova Iorque, Brasil. «Se não tivesse sido a atitude firme de Salazar, a Índia portuguesa teria sido indianizada», afirma o «The Washington Post».
Pouco antes da invasão, Franco Nogueira sublinha aos diplomatas a «utilidade de representantes dos maiores órgãos de imprensa, que ofereçam garantias de imparcialidade, visitarem Goa». Marcello Mathias escreve-lhe de Paris: «Cá ando a tentar mandar jornalistas para Goa.» O mesmo lhe comunica, de Washington, Pedro Teothónio Pereira: «Estou tentando esforços para conseguir a ida imediata de jornalistas.»
«Tartufo», «Pacifista de duas caras», «Átila», são epítetos que passam a designar o primeiro-ministro indiano.
Um plano surge lentamente, perversamente, no espírito de Salazar: o massacre dos portugueses pelos indianos tornar-nos-á aos olhos do mundo heróis e mártires. A opinião pública mudará, então, a nosso favor.
«Se as grandes potências se convencerem», confidencia a um amigo, «que os portugueses são os únicos que, pela sua maneira de ser, cultura e língua, podem manter-se em África, será possível ultrapassar esta fase de dificuldades».
Franco Nogueira convence-se, como os dignitários do regime, que os militares portugueses vão imolar-se. Diz em Washington: «Eles vão resistir até ao fim. Podem morrer todos, mas, primeiro, cada um matará dez indianos.»
Anos mais tarde, comentará: «Acreditei de facto nisso. Os militares andam sempre a jurar que se sacrificam pela Pátria... A certa altura o dr. Salazar perguntou-me: `E se eles se rendem?' Respondi-lhe que não. Enganei-me.»
A roleta do destino aumenta de velocidade. Salazar coloca nela todas as fichas. As suas ordens são secas: resistir até ao fim. «É horrível pensar que a defesa de Goa pode significar o sacrifício total, mas recomendo e espero esse sacrifício», escreve, «como única forma de nos mantermos à altura das nossas tradições e prestarmos o maior serviço ao futuro da Nação. Não prevejo possibilidade de tréguas, nem prisioneiros portugueses, como não haverá navios rendidos, pois sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos.»
«Cansado dos militares»
Salazar não confia nos militares. Deprecia, aliás, os seus rituais de mando, de casta. De intromissão na política. Era com «profundo aborrecimento que assistia aos desfiles. Cansava-se muito. Não gostava de fardas nem de armas. Não entendia muito bem as coisas deles. Andava, aliás, sempre preocupado, sempre alerta com o que faziam lá nos quartéis», conta Maria de Jesus, a sua governanta.
Vassalo e Silva compreende o objectivo do chefe do Governo. É nele, nas suas mãos, que o destino deixa os botões da morte. O tempo é de vertigem. Nehru não vai recuar. A comunidade internacional não vai interferir.
O patriarca das Índias, D. José de Alvernaz, aconselha-o a render-se. A optar pela vida. Vassalo e Silva («O melhor governador, depois dos vice-reis, da Índia», no dizer de Costa Gomes) decide-se.
Manda evacuar as mulheres e as crianças: «É conveniente que a população tenha consciência do perigo que a rodeia», especifica em comunicado. Organiza um esquema de rendição, o Plano Sentinela. Para Lisboa envia notícias de exaltação: «Somos poucos, mas resistiremos até ao fim.»
Nehru está constrangido. Portugal obriga-o a usar a força, a trair-se como pacifista. O tempo, a situação interna, as ameaças paquistanesas jogam contra ele. Não tem outra saída. A 18 de Dezembro de 1960 dá ordem para as Forças Armadas actuarem. Pede-lhes, no entanto, que evitem violências excessivas. A Aviação, o Exército e a Marinha avançam.
Capitaneado por António da Cunha Aragão, um velho (único na zona) vaso de guerra, o Afonso de Albuquerque, aponta à esquadra inimiga e enfrenta-a. Três quartos de hora depois é afundado. Um marinheiro português e 14 indianos morrem.
Pouco depois, empunhando uma bandeira branca, quatro oficiais portugueses tomam lugar num jipe e arrancam. Entre eles vai, por saber falar inglês, o capitão médico Garcia da Silva. «Em nome do nosso general, peço-lhe o cessar-fogo», diz ao comandante invasor. «Os indianos não queriam matar ninguém, a sua intenção era obrigar os portugueses à rendição», recorda hoje (no «Tal & Qual») Garcia da Silva
«Uma aflição»
Em Lisboa, o clima faz-se melodramático. Sem notícias, todos pensam que a tragédia se consumou: «A hora é de guerra. Podemos tombar, mas caímos de pé, dando ao mundo uma lição que não será inútil. Corre o sangue generoso dos homens que envergam as nossas fardas», escreve Augusto de Castro em editorial do «DN».
Na Sé, em vigília ante as relíquias de São Francisco Xavier, o cardeal Cerejeira exclama:» Portugal não morre, mas a perda da Índia leva-lhe parte da sua alma e do seu coração.»
As casas de espectáculos fecham. Marchas silenciosas desfilam pelas principais cidades, o país ajoelha em oração durante a noite. A rádio fala da «resistência heróica» dos portugueses da Índia que «defendem a civilização cristã e ocidental» com a sua vida.
«Os combatentes de Goa, Damão e Diu estão a escrever o Canto XI dos Lusíadas», afirmam estudantes de Coimbra.
Ao saber do fracasso dos seus planos, Salazar adoece gravemente. Perde a voz, durante vários dias, devido a uma colicistite aguda que o obriga a tomar grandes doses de antibióticos. Reage com dificuldade. O discurso que dirige à Assembleia Nacional na sequência da invasão tem de ser lido por outro.
«Foi uma aflição. Nunca mais esquecerei», lembra ainda Maria de Jesus, «nunca mais esquecerei essas horas, em São Bento, agarrados à telefonia, atentos ao telefone. Rezei vários terços para que tudo corresse como ele queria. Só um dia depois soubemos da traição. Ele ficou lívido, não queria acreditar. Recusou comer. Fechou-se no quarto muito tempo. Nem o chazinho tomava. Foi um dos maiores desgostos da vida dele. E da minha.»
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