<DOC>
<DOCNO>PUBLICO-19950901-008</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950901-008</DOCID>
<DATE>19950901</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>CB</AUTHOR>
<TEXT>
Cena Lusófona, projecto da SEC, arranca em Moçambique
Maningue teatro
O projecto da Cena Lusófona produziu uma peça de teatro que se estreia no dia 8, em Maputo, e cujas exibições se prolongam até 10 de Setembro. «De Volta da Guerra», adaptação de textos de Ângelo Beolco, dramaturgo do século XVI, reúne arte e mãos moçambicanas e portuguesas.
Desde Junho que Fernando Mora Ramos, do Centro Dramático de Évora, está em Maputo a trabalhar com actores da Casa Velha e Produções Olá, entre os quais se destacam Luís Soeiro e Mário Mabjaia. A actividade desenvolve-se no âmbito do projecto Cena Lusófona, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura e que visa estabelecer o intercâmbio, na área do teatro, entre os países de língua portuguesa.
Foi em Moçambique, curiosamente, que este dramaturgo português se iniciou, na década de 70, na arte dramática, pela mão de Mário Barradas, de regresso ao país volvidos 23 anos.
Ângelo Beolco, autor italiano contemporâneo de Gil Vicente, é um dos primeiros dramaturgos que representam os camponeses de forma não decorativa. Os protagonistas da sua peça são fugitivos da guerra que, uma vez chegados à cidade, enfrentam uma segunda guerra, na procura de vínculos que se perderam no campo.
Apesar dos pontos em comum com a realidade moçambicana, Fernando Mora Ramos não pretende estabelecer paralelismos: «A sua relação com a realidade moçambicana não é de identificação imediata, mas sim mediada.» Explica-o o facto de o texto não se preocupar com o presente, no sentido em que se funda o teatro moçambicano, virado para a reportagem da situação que se vive.
É visível, sobretudo, no trabalho do actor Mário Mabjaia -- celebrizado pelas suas intervenções em programas de humor na televisão local --, o protagonista desta peça, a apropriação do texto, onde Mabjaia introduziu expressões coloquiais do dia-a-dia. De certo modo, o trabalho dos actores em «De Volta da Guerra» proporcionou uma nova perspectiva ou, se se quiser, uma nova versão. O que, pelo inesperado, deixou o encenador português «agradavelmente surpreendido e divertido». Surpresa idêntica o colheu quando foi assistir a peças de outros grupos, sobretudo pela adesão do público, «verdadeiramente explosivo».
A apetência pela arte dramática é grande em Moçambique. Ao longo dos vinte anos de independência, surgiram maningue grupos -- constituídos, na maioria, por jovens estudantes --, que se afirmam no estabelecimento de uma estética teatral. Ramos acredita que esta resulte da combinação do canto com a dança e a música, que agora surgem autónomos num mesmo espectáculo. «Uma espécie de teatro global», segundo Ramos.
O teatro moçambicano caracteriza-se também pela ausência de dramaturgos. As representações não partem de um texto escrito, resultando da improvisação dos intervenientes, o que permite uma «clareza expressiva das realidades sociais», nas palavras de Fernando Mora Ramos. Contudo, o encenador português augura outro destino para esta experiência: «A escrita é um acto individual e a do teatro também.»
A arte dramática em Moçambique radica na representação dos problemas do quotidiano, prenhe de dificuldades. «O público é o autor deste teatro», afirma Fernando M. Ramos, que elogia a sua capacidade de se deixar impregnar por «um grande imaginário popular».
Além do encenador, estão em Maputo outros quatro profissionais portugueses do teatro, responsáveis pela cenografia, dramaturgia, iluminação e adereços, que trabalham, com um grupo de crianças, o «Auto da Índia», embora sem o objectivo de o transformar em espectáculo. Ao mesmo tempo, ministram um curso de História do Teatro.
Integrado no projecto Cena Lusófona, a peça «Eu Feuerbach», de Tankred Dorst, pelo Centro Dramático de Évora, será apresentada no Teatro Avenida, em Maputo, nos dias 2 e 3 de Setembro. Também na capital, Mário Barradas, um dos impulsionadores do teatro em Moçambique no período anterior ao 25 de Abril, vai proferir no dia 6 uma palestra sobre «Teatro, desenvolvimento cultural, identidade dos povos» e, no dia seguinte, recitará poesia moçambicana.
Enquanto isto, o Mutumbela Gogo participa no Festival Internacional de Teatro, a decorrer em Zurique, na Suíça. Os moçambicanos levarão à cena a peça «Os Meninos de Ninguém» (já conhecida em Portugal), entre os dias 5 e 8 de Setembro. Este ano, o Mutumbela será o único grupo de língua portuguesa presente no festival, que reúne grupos de teatro independentes -- estão presentes americanos, alemães, canadianos, espanhóis, sul-africanos, entre outros --, recobrindo tendências várias da arte dramática contemporânea.
Nélson Saúte, em Maputo
</TEXT>
</DOC>