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<DOCNO>PUBLICO-19950906-109</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950906-109</DOCID>
<DATE>19950906</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>TC</AUTHOR>
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Norman Mailer e o assassino do presidente Kennedy
Lee o Fantasminha
O último romance de Norman Mailer é uma ficção sobre uma personagem histórica: Lee Harvey Oswald. O livro, que é, como a maior parte das vezes com Mailer, um trambolho (791 páginas e um apêndice que tem 37), é o primeiro «grande romance» que dá consistência romanesca a Lee, um «joker» que tem sido patético ou trágico, conforme a história em que se queira acreditar. Mailer estudou os relatórios da Comissão Warren, a documentação secreta do KGB, passou meses na Rússia a fazer entrevistas. Fez uma História à medida do homem que foi promovido a obsessão nacional nos EUA. No livro, não se imagina o homem que se tornou, não obstante o seu ar de Fantasminha, num fantasma principal, a fazer parte de uma organização importante. Ninguém poderia ter confiado nele a esse ponto.
Tereza Coelho
Passou muito tempo, mas nunca surgu a prova incontestável de que Lee fosse um agente do FBI, da CIA, de Cuba, do Exército, ou de qualquer outro organismo além de si próprio. Há duas explicações. Ou não surgiu uma prova por não haver nenhuma, visto que Lee não passou de um homenzinho a querer subir na vida, um homenzinho que, enquanto não subia, ia sovando a mulher uma vez por outra, como todos os homenzinhos que querem ser alguma coisa e não conseguem, e que entretanto se «passou» de vez e matou o presidente (há esta ideia em Priscilla Johnson McMillan -- «Marina and Lee»; em Jean Davison -- «Oswald's Game»; em Gerald Posner -- «Case Closed»), ou então não se encontra nada porque a conspiração implicou um número suficiente de «Forças do Mal» para garantir a impunidade (por exemplo, em Oliver Stone, com o filme «JFK»).
Para Norman Mailer, as duas hipóteses têm vantagens. A primeira porque é económica, concentrando a culpa num único culpado. A segunda porque é desresponsabilizante: o Mal era tão poderoso que ninguém poderia ter impedido nada. As duas têm inconvenientes: fragilizam, de maneiras diversas, a crença nas instituições. Por um lado, é grave que o primeiro palerma que se apresenta consiga assassinar o Presidente mais popular de todos. Por outro lado, não é menos assustador reconhecer a impotência para enfrentar o Mal. Mas, independentemente da maior ou menor plausibilidade das versões, há um «problema» central nestas histórias. Nenhuma responde à pergunta imediata: Lee Harvey Oswald matou ou não JFK, e, se matou, foi como atirador solitário ou como participante numa conspiração?
Em vez de explorar os cenários possíveis e decidir qual é o mais provável, Mailer fez a «démarche» inversa. Este livro é uma exploração sistemática da vida de Lee, revelando, na sua maior parte, segmentos escondidos, como o segmento-Minsk, que diz respeito à porção de vida de Lee quando ele requereu a cidadania russa e se mudou para a URSS. É essa exploração que determina o contorno da personagem; e, no fim do livro, o cenário que consideramos mais provável (o brilhantismo de Mailer está, também, em fazer-nos escolher esse, sem que em parte alguma do livro se possa dizer que ele está a sugerir-nos uma resposta) é o mais congruente com a personagem que o escritor encontrou. Raras vezes terá sido tão apropriado falar em «personagem à procura de um autor»: mas, em «Oswald's Tale», é isso que fica, a convicção de que o enigma só é resolúvel através da ficção. O mérito de escritor cabe a Mailer, mas o da investigação é repartido com um jornalista, Larry Schiller, a quem o livro é dedicado. Schiller, que foi com Mailer para a Rússia fazer as entrevistas, já tinha trabalhado com ele em «O Canto do Carrasco»; e foi quem conseguiu, para esta história, os contactos na Rússia e o acesso à documentação secreta do KGB.
Uma das conclusões de Mailer sobre Lee é uma conclusão tipicamente «désabusée», mas nem por isso menos sensata. Ele conclui que, vendo bem vistas as coisas, o mediano Lee corresponde muito mais ao sonho americano do chamado «cidadão comum» do que o glorioso JFK. Não, Lee não quer, como o outro, ser Presidente dos EUA. Ele quer ser conhecido, ter dinheiro e ser amado pela mulher; quer estas coisas ao mesmo tempo; e é a forma como um sonho de mediania que tropeça pode transformar o sonhador num assassino que o livro esclarece. O resto é puro Mailer: violento, obsessivo, emotivo («emoção» na modalidade «viril»), inteligente, irónico, por vezes de um cabotinismo insuportável, que só tem redenção no facto de ele ser um escritor sobredotado. Aqui, retoma a forma literária que ele próprio «inventou», nos tempos de «The Armies of the Night» (1968), e da qual o marco ainda é «O Canto do Carrasco» (1979) -- a forma do romance-reportagem que ficcionaliza os acontecimentos «reais».
Aqui, dispomos de acontecimentos muito«reais», mas de uma personagem quase completamente fantasmática. Não houve tempo para se perceber como é que era Lee, Jack Ruby matou-o logo a seguir. Marina, a viúva de Lee, que é agora uma senhora de meia-idade que fuma quatro maços por dia, diz que sempre que vê um filme em que há um actor a fazer de Lee o actor nunca se parece com ele. Pode quando muito ter o mesmo penteado, mas é praticamente tudo: há poucas imagens para «copiar» a personagem. Ela própria ainda não chegou a uma conclusão sobre o marido. Na época, acreditava que ele fosse culpado. Agora pensa o contrário. «Eu não gosto dele. Estou furiosa com ele. Sim, furiosa. Como é que ele foi capaz de me abandonar daquela maneira? Naquelas circunstâncias? E, no entanto, tenho a certeza: não foi ele. Porque ele não iria envolver a mulher e a família naquele género de coisas. Sim, acredito que lhe tivessem dado uma missão, até acredito que fosse para isso que ele quis viver na Rússia, embora primeiro tivesse que perceber o que é que ele lá fazia exactamente. O que sei é que se havia alguma coisa não começou de repente na América, já vinha de mais longe, depois foi a continuação... E é para mim que eu penso isto, não quero convencer ninguém. Mas penso que ele foi mandado para a Rússia. Não tenho provas».
Não há provas; mas, a partir do livro, que não exclui a hipótese de ele ter sido «mandado», parece mais verosímil que ele tenha para lá ido por sua iniciativa. Quando, em Moscovo, o seu visto acaba, e Lee fica a saber que tem de abandonar o território no dia seguinte de manhã, escreve no seu diário, a meio do mês de Outubro: «Estou em estado de choque! Acabaram todos os meus sonhos. (...) Esperei durante dois anos que me admitissem». Foi para o quarto e cortou os pulsos. A médica que o tratou, no hospital, confirmou que os ferimentos tinham a profundidade de arranhões; no exame psiquiátrico, quando lhe perguntaram o motivo, Lee respondeu que tinha medo de voltar ao seu país. A conclusão do relatório foi a de que ele tinha um sincero desejo de ficar; e, uns dias depois, Lee dirige-se à embaixada dos EUA, com o objectivo de renunciar à cidadania americana. Entretanto ninguém parece saber muito bem o que fazer com ele, e ele vai ficando; lê Dostoievsky e compra uns manuais para aprender a falar russo. Em Janeiro do ano seguinte, 1960, dão-lhe 5.000 rublos, colocam-no a trabalhar numa fábrica em Minsk onde ganhará 700 rublos por mês, e ele parte para Minsk.
Há cuidadosos relatórios do KGB sobre os primeiros dias de Lee em Minsk, mas não há nada decisivamente suspeito: andava sozinho, passeava no GUM local, comia no restaurante do hotel onde estava hospedado. Depois há mais relatórios sobre os primeiros dias de Lee na fábrica, onde continua a não acontecer nada. Há cuidadosos registos das saídas de Lee com Ella, a primeira namorada regular que arranjou em Minsk, em Dezembro de 1960. Curiosamente, é depois de Ella lhe responder que não quando ele a pede em casamento que aparecem nos diários de Lee as dúvidas sobre o seu desejo de cidadania russa, o que coincide com o momento em que o governo está praticamente disposto a conceder-lha. Aqui, Lee já pensa que «Na União Soviética as pessoas vivem sempre com medo», e no dia 4 de Janeiro de 1961 recusa a cidadania e pede o prolongamento do visto por um ano.
Lee H. Oswald está a dois meses de conhecer Marina, com quem irá casar-se. Há testemunhos de época hesitantes entre catalogá-lo como bissexual ou heterossexual. «Igor Ivanovich disse que Lee não era uma pessoa decente, e não recusava nenhum tipo de situações. Tinha sexo quando podia, o que não era muitas vezes». E há quem diga que ele não exibia comportamentos desviantes: «Saía com uma rapariga e depois às vezes levava-a para casa, mas o que lá faziam só Deus sabe»; no entanto, mais tarde há relatórios do FBI em que se certifica que Lee tinha amigos entre os `travestis', em Nova Orleães; na opinião de Mailer, era um heterossexual casado durante «quinze semanas por ano», o resto não se sabe. Quanto a Marina, tinha uma vida libidinal agitada. Conheceram-se numa festa, e ela diz que o achou bem-educado e atencioso; Lee dir-lhe-ia que reparou nela logo que entrou, o que deve ser verdade, porque Marina era muito bonita, tinha um vestido vermelho e o cabelo «penteado à Brigitte Bardot».
Marina diz que se apaixonou, e ela tinha 18 anos, portanto deve ter-se apaixonado. Apresentou Lee, a quem chamavam «Alik», por ser mais fácil, aos tios com quem vivia (era órfã de mãe). Em Abril aceitou o pedido de casamento. Casaram logo que tiveram a autorização oficial, o que aconteceu dias depois; e Marina descreve o dia como uma verdadeira noiva: «O dia mais feliz da minha vida».
Lee e Marina nos EUA
Segundo disseram os próximos de Marina ela «não era virgem quando se casou». Mas, depois do casamento, «tornou-se uma mulher decente». Marina admitiria, numa entrevista, que tentou encontrar, na farmácia onde trabalhava, uma coisa qualquer que disfarçasse o facto de ela não ser virgem; segundo ela, tinha sido violada por um homem que depois lhe disse: «se soubesse que eras virgem não me metia nisto» (ela explicou que não tinha fugido do quarto porque foi num hotel, com vigilantes em todos os pisos). Como quer que seja, não consta que Lee tenha insistido muito numa explicação para o facto. E, um mês depois do casamento, Lee escreve no seu diário que, embora se tenha casado com Marina para ferir Ella, está agora apaixonado por Marina.
Em Junho, Lee pergunta-lhe se, no caso ele decidir voltar para os EUA, ela volta com ele. Marina responde que sim. O que ela não sabe é que Lee mantém correspondência nesse sentido com a embaixada dos EUA desde o princípio desse ano, ou seja, desde o momento em que recusou a cidadania russa. E, a partir do momento em que Marina, já grávida, lhe diz que irá com ele, Lee começa vivamente a tentar obter autorização para voltar: desloca-se a Moscovo sem dizer a nada a ninguém, e, segundo o relatório da visita que ele fez à embaixada americana, pede um visto de saída, alegando que vinte meses de permanência na URSS tinham sido suficientes para ele aprender a lição, e que sabia agora que os EUA eram um país de liberdade e oportunidades. A partir desta fase há umas extraordinárias transcrições das gravações que o KGB fez dentro da casa de Oswald e Marina, em que se percebe que as discussões do casal, não necessariamente sobre a saída da URSS, foram de grande tensão, típicas das discussões que podemos imaginar para os casais. As gravações referem-se a Marina como «mulher». Exemplo:
Lee -- Porque é que estás a chorar? Já te disse que não te servia de nada.
(a mulher chora).
Nunca te enganei. Nunca te disse que era boa pessoa.
(ela continua a chorar e ele tenta acalmá-la)
Mulher (entre soluços) -- os meus amigos já nem me reconhecem.
Lee -- E depois? Eu também estou mais magro.
Mulher -- Porque é que eu me casei?
Lee -- O que é que queres que eu faça? Se trabalho demais a culpa não é minha. E tu nem sequer cozinhas, a maior parte das mulheres cozinha. E eu nem te digo nada. Não te grito. Nunca fazes nada e nem sequer lavas a louça. O que é que tu fazes? Só sabes dizer que vens muito cansada do trabalho.
Mulher -- Porque não consigo descansar.
Lee -- E a culpa é minha?
O que se percebe, muitas páginas depois, é que o par Marina e Oswald, quando finalmente consegue autorização para abandonar o país, depois de uma série de burocracias e trapalhadas, já tem uma visão por assim dizer muito menos idílica sobre as alegrias da vida conjugal do que teria um par recém-casado. E, além disso, têm já uma criança, June, que é registada à maneira russa: o apelido é o nome próprio do pai. E fica June Lee.
Marguerite Oswald, a mãe de Lee Harvey Oswald, considerada por Mailer a personagem mais romanesca de todas, uma mãe que deu banho ao filho até aos 11 anos de idade do rapaz, e que depois disso se dirigia periodicamente com ele ao médico para verificar se o pénis do adolescente tinha um tamanho regular, começou por ser persona non grata na casa de Marina e Lee, quando eles se instalaram em Forth Worth, Texas. Marina e Marguerite imediatamente se deram mal, como é regra nestas coisas. Tudo é típico, neste casal: as discussões, as expectativas que ela tem de que ele a trate melhor, as expectativas dele de que a mulher seja dedicada, submissa e apaixonada, as embirrações da mãe, que acha Marina má dona de casa e má mãe. E, ao mesmo tempo, ao longo das mudanças de casa e de região nos EUA, vai-se instalando a sensação de que Lee tem uma perturbação mental qualquer. Por outro lado, nos pontos em que é possível estabelecer conexões com o FBI, ou a Mafia, e Lee, essas conexões são estabelecidas através dos disparates de Lee, por exemplo quando vai viver para Nova Orleães e se apresenta como director da FPCC [Fair Play for Cuba Commitee] local.
Mais tarde, fica a dúvida sobre o grau de envolvimento de Lee num movimento pró-Castro -- principalmente quando ele decide ir para o México e interpelar aí a embaixada de Cuba no sentido de obter um visto para ir a Cuba quinze dias, no meio de uma hipotética viagem de retorno à URSS (não tinha conseguido, entretanto, autorização para voltar para a URSS, ao contrário do que disse na embaixada de Cuba).
O protagonista transtornado
Ao longo de todo o livro, multiplicam-se os sintomas da vontade de protagonismo de Lee. E, ao longo de todo livro, vamos tendo informações, explícitas ou implícitas, sobre o caminho que seguem os seus transtornados processos mentais. Lee gostava de ler «Mein Kampf». Algumas partes em especial. Por exemplo, uma parte em que Hitler explica como é determinante «um profundo sentido da responsabilidade social que permita criar bases mais seguras para o nosso desenvolvimento, juntamente com uma determinação brutal para destruir os tumores incuráveis». (Esta parte pode ser lida em conjunto com uma frase escrita por Lee: «Pergunto-me o que aconteceria se alguém resolvesse levantar-se e dizer que se opunha não só aos governos mas também ao povo, à terra, e a toda a sociedade»).
Para Mailer, uma explicação está encontrada: o «tumor incurável» apontado por Hitler foi localizado por Lee em JFK, o Presidente Consensual. «Kennedy tinha habilidade para dar esperanças ao ethos Americano. (...) Não era considerado, como os outros, um mau Presidente; e por isso, era demasiado bom. No sentido mais profundo, para Oswald, o tumor estava localizado -- era o facto de Kennedy ser demasiado bom. O mundo estava em crise e o que era preciso era criar condições para reconhecer que era necessária uma nova sociedade. Se assim não fosse, os efeitos malignos do capitalismo, juntamente com a degradação soviética do comunismo, iam retirar às pessoas qualquer vontade de criar um novo mundo».
Sim, no fim do livro, a hipótese do romancista é inteiramente plausível. Isto vem na página 781, depois da descrição dos «acontecimentos». Foi Lee Harvey Oswald? Ainda não há evidência. «A evidência nunca reponderá ao mistério, pois é da natureza da evidência produzir, mais tarde ou mais cedo, uma contra-interpretação». É por isso que ficar a decidir se era bom ou mau atirador não serve. O que se sabe é que Lee estava transtornado, era paranóico, e que os últimos tempos tinham sido péssimos, semeados de conflitos com toda a gente, incluindo a mulher, que nessa altura já tinha produzido outra menina para o casal. Marina, quando o viu na altura, depois de ele ser preso, assegurou: «Pude ver nos olhos dele que era culpado. Disse-me adeus com o olhar. Também pude ver que ele tinha medo». Marina cada vez gostava menos de Lee e cada vez era mais fã de JFK. Pela primeira vez na vida, no dia em que o Presidente foi morto, Lee, quando saiu de casa, deixou a aliança de casamento guardada numa taça. Nunca antes fizera aquilo. Outro argumento. Nenhuma organização responsável faria depender de Lee uma conspiração importante.
Jack Ruby, que disparou matando Lee no momento em que este era transferido, e sobre quem há uma tese quanto ao envolvimento com a Mafia, estava numa fila para ver «strip-tease», saiu e matou Lee. O que põe em dúvida a ideia de «conspiração» é que se Jack Ruby tinha de matar Lee não podia, naquele momento, ter a certeza absoluta de ter oportunidade, e depois daquele momento já não lhe seria possível, visto que Lee estava a ser transferido. Além disso, sem a cumplicidade da polícia, não podia saber que Lee ia aparecer.
Jack Ruby alegou que tinha feito aquilo por Jacqueline Bouvier, que ele não queria ver obrigada a voltar por causa do julgamento. Jacqueline, de tailleur Chanel cor-de-rosa, luvas brancas e uma parte do cérebro do marido nas mãos, tê-lo-ia impressionado assim tanto? Se a vida fosse um romance, sim. Isto também era possível.
Título Oswald's Tale
Autor Norman Mailer
Editor Random House
791 pgs. ++ 37, 30 USD
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