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<DOCNO>PUBLICO-19950907-115</DOCNO>
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<DATE>19950907</DATE>
<CATEGORY>Sociedade</CATEGORY>
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Amnistia diz que Conferência está a ser sabotada
Finalmente começou em Pequim o debate sobre as mulheres
Mesmo que uma Plataforma de Acção seja ainda uma hipótese difícil. Mesmo que entre conservadores religiosos e Estados liberais não se vislumbre consenso. Mesmo que temas como contracepção ou sexualidade nem sejam temas para alguns. Ontem, em Pequim, na Conferência sobre as Mulheres começou finalmente a falar-se de mulheres. E também houve mais Hillary.
As delegadas à IV Conferência Mundial sobre a Mulher clamaram ontem: «Finalmente está a falar-se das mulheres». A conferência esteve inicialmente ocultada pelo debate dos direitos humanos na China e depois, bom, depois chegou Hillary Clinton. Mas dizer que finalmente se está a debater o tema que levou a Pequim milhares de participantes não é dizer que se está a chegar a consensos.
Hillary Clinton tornou-se, entretanto, um centro das atenções em Pequim. Só que, ontem, falava-se de decepção. No Fórum das Organizações Não Governamentais (ONG) aguardava-se da primeira dama norte-americana um «discurso musculado». Pelo menos tão forte quanto o do dia anterior, na Conferência oficial. Afinal, Hillary só criticou ligeiramente a China, cujas autoridades a têm ignorado; rendeu homenagem às mulheres das ONG e terminou sem falar de aborto ou de esterilizações forçadas. Decepcionou.
O «show» Hillary teve como efeito perverso o desviar de atenções sobre o que se está de facto a debater na Conferência. Cada vez parece mais difícil acreditar que se consiga atingir uma plataforma de acção, tendo em conta, por exemplo, as posições opostas de conservadores religiosos e estados liberais em capítulos como a contracepção ou a sexualidade das mulheres.
Ontem, portanto, registaram-se os primeiros embates na discussão. Na base da controvérsia está o capítulo do documento que aborda a saúde ligada à sexualidade, procriação, planeamento familiar e à maternidade. O Vaticano e o Irão declararam ser contra a noção de «direitos sexuais» e do «direito das mulheres à posse da sua fertilidade». O Paquistão fez saber que não vai aceitar o conceito de «mães celibatárias».
A Conferência está minada? A Amnistia Internacional fala mesmo de sabotagem e decidiu ontem denunciar que há governos apostados em travar os progressos alcançados nas liberdades da mulher. Apontar o dedo já é mais difícil. Pierre Sane, secretário executivo da Amnistia Internacional, recusa-se a referir os nomes dos países em causa.
Mesmo a Santa Sé, eventualmente visada pelas declarações de Sane, decidiu demonstrar agora uma posição construtiva. O Vaticano, visto como uma das «forças de resistência» nas anteriores Conferências da ONU por causa da sua posição em relação à contracepção e ao aborto, fez questão em afirmar que não tem intenções de complicar o andamento dos trabalhos na Conferência. Em vez de reabrir os velhos debates, a Santa Sé diz que quer ter um papel construtivo na elaboração da Plataforma de Acção.
Na Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento, realizada há um ano, o Vaticano e outros estados, incluindo o Equador e Malta, foram acusados pelos seus opositores de tentarem restringir os direitos da mulher. Isto porque contrariaram qualquer alusão, no documento final, ao controlo total da mulher sobre o seu próprio corpo.
A líder da delegação do Vaticano, Mary Ann Glendon, disse ontem em conferência de imprensa que «o Vaticano quer fazer um esforço positivo e construtivo» e quer focar a sua atenção nos temas da conferência -- igualdade, desenvolvimento e paz».
Glendon aproveitou para qualificar de «fantasia» a ideia de que estão a decorrer negociações de bastidores entre a Santa Sé e o Irão. «Esta chamada aliança foi criada pelos meios de comunicação e não pelos padres», referiu a representante do Vaticano.
Hillary a falar, delegadas à chuva
Mas se já se começou a falar de mulheres, o que mais ressalta do fluxo noticioso são ainda aspectos relativamente laterais ao debate. Tanto mais que os Estados Unidos atacaram, ontem, em duas frentes, com Hillary Clinton a ser recebida em Huairou, pelas participantes do Fórum das Organizações Não Governamentais (ONG) e com o discurso da embaixatriz norte-americana na ONU, Madeleine Albright, falando no plenário da Conferência e lançando novo ataque à China por causa da sua política de planeamento familiar.
As atenções continuaram viradas para a primeira-dama dos EUA, embora os meios de comunicação oficiais chineses tenham ignorado a sua presença em Pequim. Cerca de três mil delegadas das ONG, o dobro do que era esperado, apareceram encharcadas e com os sapatos enlameados à porta de um cinema que teve que ser transformado em sala de conferências por causa da chuva que não parou de cair durante todo o dia.
A situação complicou-se quando os guardas chineses se recusaram a deixar entrar no edifício membros da delegação norte-americana que acompanhava Hillary Clinton, que foram obrigados a permanecer à chuva.
Donna Shalala, directora do Departamento de Serviços de Saúde e Recursos Humanos e co-presidente da delegação americana, e o secretário de Estado Assistente, Winston Lord, que já exerceu o cargo de embaixador na China, tiveram que discutir à chuva com os seguranças chineses durante meia hora, antes de conseguirem entrar no edifício.
Lisa Caputo, a adida de imprensa de Hillary Clinton, não chegou a conseguir passar pelos guardas. «As pessoas estavam engarrafadas, não percebo porque é que não nos deixaram entrar».
As mulheres que conseguiram entrar levaram cartazes como um em que se lia «Amanhã vamos liderar como tu» e cantaram músicas como «We shall overcome» e «Gonna keep moving forward», antes de Hillary Clinton falar. «Sei que muitas das vossas amigas estão ausentes», declarou a primeira-dama do EUA que focou o seu discurso num elogio à tenacidade e perseverança das mulheres das ONG.
Embora indirectamente e num tom moderado, Hillary Clinton tocou na questão da violação dos direitos humanos na China ao afirmar que «esta conferência organiza-se para que as mulheres, os seus filhos e as suas famílias tenham a possibilidade de ter acesso à saúde, ao trabalho, a uma vida sem violência e aos direitos humanos reconhecidos internacionalmente».
Maria Barroso quer Ministério
Também a primeira dama portuguesa, Maria Barroso Soares, se dirigiu ontem a delegadas lusófonas -- de Portugal, África e Timor-Leste --, advogando a criação de um Ministério da Mulher, que «defenderia melhor os direitos da mulher». Maria Barroso acrescentou que, em relação à antiga Comissão da Condição Feminina, a actual Comissão para a Igualdade e os Direitos da Mulher «foi minimizada», apesar de funcionar «muito bem».
Entretanto, se Hillary Clinton não voltou a falar do aborto forçado e da esterilização -- práticas impostas na China pelo Estado -- já Madeleine Albright, embaixatriz norte-americana na ONU decidiu agarrar o tema. «Nenhuma mulher -- seja em Birmingham, Bombaim, Beirute ou Beijing (Pequim) -- deve ser forçada a recorrer a esterilização ou à prática do aborto», afirmou Albright.
A embaixatriz norte-americana também referiu a questão dos direitos humanos, anteriormente focada por Hillary Clinton. «É extremamente injusto que o direito à livre expressão tenha sido focado numa reunião como esta, patrocinada pelas Nações Unidas, cujo principal objectivo é promover um discussão franca e aberta sobre os direitos das mulheres».
Referindo que Washington vai continuar a pressionar a China e outros países na questão dos direitos humanos, Albright afirmou que os EUA vão manter conversações com os governos que insistem em negar aos seus cidadãos os direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Albright citou um antigo poema chinês onde o pai fala com a filha, para ilustrar a necessidade de lutar pela igualdade entre os sexos. «Temos um cão para guardar a casa, e um porco também dá jeito,/Temos um gato para apanhar um rato, mas o que é que podemos fazer/Com uma rapariga como tu?»
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