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<DOCNO>PUBLICO-19950910-083</DOCNO>
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<DATE>19950910</DATE>
<CATEGORY>Nacional</CATEGORY>
<AUTHOR>AB</AUTHOR>
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Retrato da Semana
António Guterres teve uma excelente estocada contra Fernando Nogueira: a da resolução da União Europeia, assinada por Silva Peneda e relativa ao rendimento mínimo. O seu interlocutor ficou enfiado, como se lhe tivessem mostrado a prova de que fumava marijuana aos fins-de-semana. Espectáculo à parte, o mais interessante desse episódio é o que ele revela: a enorme distância que vai entre as políticas nacionais e as europeias. Aquilo a que assistimos foi à demonstração de que o que se diz em Bruxelas é diferente do que se exibe para consumo interno. Não pode haver melhor exemplo de «double talk».
Nogueira mimoseou Guterres com um eficientíssimo «upper-cut»: o adversário queria aumentar as penas para certos crimes, sem sequer saber os seus valores actuais. Esquecendo o efeito cénico, sem grande importância, até porque ambos querem ter a mão pesada com os criminosos, importa olhar um pouco mais de perto para o problema. A diferença de penas, entre 18, 21 ou 25 anos, é secundária. Não creio que alguém tenha uma só prova empírica de que dez ou vinte por cento de agravamento de penas tenha efeitos sobre a criminalidade. Nem a pena de morte, quanto mais cinco anos! É aliás por isso que as propostas de trinta anos do PP são demagógicas. O ponto é que há complacência a mais. A cultura judicial está impregnada da ideia de que a culpa é, em última instância, da sociedade. Os responsáveis são os outros, a família, a escola, o meio social ou a televisão. As circunstâncias atenuantes, de natureza psicanalítica, cultural, sociológica e outras, são excessivas. Não se cumpre, em geral, nem metade das penas. Sucedem-se as amnistias. Os indultos são de rotina. Os direitos dos criminosos são por vezes superiores aos das vítimas. É este relativismo complacente que cria o sentimento de debilidade da justiça e de impunidade do crime.
As mentiras eleitorais têm um estatuto especial. São boas se servem os nossos amigos. São imorais quando utilizadas pelos adversários. Mas ninguém as leva a mal. Os seus autores não são castigados. Toda a gente as esquece.
A última em data e talvez a mais monstruosa atribui ao PSD, nas palavras de Nogueira, a autoria do «Estado social». Se, com isto, se quer referir ao Estado providência, Nogueira sabe que é mentira. O início, incipiente, vem dos últimos anos de Salazar. A segunda fase, já com alguma ousadia, vem de Marcelo Caetano. E a terceira, de verdadeira criação e de acelerado desenvolvimento, ocorreu entre 1974 e 1985. Que os dez anos de cavaquismo o tenham consolidado, não nego. Que, nesses dez anos, as pensões tenham sempre aumentado em valor real, confirmo. Que o PSD tenha fundado o Estado providência, já é redonda falsidade.
Ao contrário de Nogueira, derrotado por Guterres, Durão Barroso venceu o seu debate contra Almeida Santos. O que não o impede de ter sido ignorante ou demagógico. Vou pela segunda, que é pior. Barroso citou números gloriosos: o produto português, equivalente a 53 por cento da média europeia, em 1985, seria hoje de 69 por cento! Ele sabe que não se pode comparar. Ele sabe que o aumento é virtual e se deve, em grande parte, à mudança estatística de 1994, com a qual o país, sem nada ter feito para isso, galgou meia dúzia de pontos. Se ele sabe tudo isto e insiste na pirueta, que pensar da sua noção de rigor, que, diz, foi introduzida pelo PSD?
Neste mesmo debate, não posso deixar de estranhar o facto de Barroso, com inaudito descaramento, ter denunciado o estatismo de 1985 de Almeida Santos, sem que este lhe tenha referido o estalinismo de 1975. Há limites cronológicos para o disparate?
A recordar: Durão Barroso garantiu que, em 1996, os cortes orçamentais poderão ser de dez por cento, a ratear equitativamente por todos os ministérios. Ainda bem que o disse. É que esta interessante proposta não vem no programa do PSD.
A propósito do programa do PS, Vicente Jorge Silva fala de esmagamento. Creio que foi benévolo. Talvez por ser fisicamente menos robusto, fiquei arrasado. Como se um furacão chamado «Programa» tivesse passado por mim. Se o do PSD é chato, inútil e conformista, o do PS é uma espécie de páginas amarelas. Só lhe falta a ordem alfabética. É de tal modo pletórico que dali não sai uma política. Tem de falar de todos, numa espécie de vassalagem sedutora que a tudo acaba por retirar importância. Após extenuante esforço, descobri uma falha: não propõe uma só medida a favor dos albinos!
Os CTT voltaram a atacar: é, em duas semanas, o terceiro panfleto do PSD. Volta o carteiro a entregar-mo, sem sobrescrito, retirando-o de um maço de centenas. Já nem me deixa fazer perguntas: «São ordens...», atalhou. Entretanto, os CTT informaram o meu jornal preferido de que se tratava de um serviço normal e legal. Os outros partidos consentem. Os organismos de defesa do consumidor calam. Eu continuarei a insurgir-me contra esta forma ilegítima de propaganda e de abuso de um serviço público. Mesmo que seja legal, como dizem.
Diferente é o panfleto biográfico de Nogueira, enviado com todos os cuidados e devidamente endereçado. O pior vem lá dentro. Na sua juventude, o líder frequentou a Universidade de Coimbra. Estava lá durante a greve de 1969. O técnico de imagem encarregado desta delicada obra relata as façanhas do herói. Assegura que era um homem «de princípios e de tal firmeza que não furou o luto académico»! Se é exacto, o retrato é horrível.
Foram publicadas as estatísticas dos resultados das provas específicas. É confrangedor. As médias são baixíssimas: por exemplo, cerca de 15 por cento em Física, Matemática e Geologia. A média mais alta, 64 por cento em Sociologia, deixa-me, pelo contrário, recear pelo entendimento corrente que se tem desta disciplina. As médias à volta dos 30 por cento (Direito, Francês, Inglês, Psicologia e Química) ajudam a imaginar o nível geral. É teoricamente possível que os estudantes portugueses sejam incapazes. Mas o que estes resultados revelam é um fenomenal fracasso do sistema, dos programas, dos professores e das avaliações.
Mas, se é possível, há pior. Esta prova específica, tal como a de aferição, é a obra-prima deste absurdo sistema. Como se sabe, é perfeitamente possível entrar na universidade com zero por cento na específica. E outro tanto na aferição. Não é só possível: é o que acontece todos os anos!
Outros resultados foram os publicados pela Faculdade de Letras de Lisboa: exibiu, com nomes e B.I., os rendimentos dos pais dos alunos! É uma das mais graves violações da privacidade jamais cometidas em Portugal.
Faltam vinte dias! Só espero que Mários Soares continue a vetar os diplomas que o Governo lhe manda de afogadilho. Nem mais um decreto! As inaugurações, ainda compreendo: fazem parte do mercado democrático. As leis é que não.
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