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<DOCNO>PUBLICO-19950922-168</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950922-168</DOCID>
<DATE>19950922</DATE>
<CATEGORY>Nacional</CATEGORY>
<AUTHOR>JPMP</AUTHOR>
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Governo minoritário pode durar quatro anos
Eduardo Dâmaso e Jerónimo Pimentel
O seu objectivo é a maioria absoluta mas admite todas as hipóteses, incluindo a de não chegar lá. Se o PS for o partido mais votado, António Guterres formará governo e afirma que, mesmo minoritário, pode durar quatro anos. Desde já, lança um aviso às oposições, afirmando não admitir que o seu orçamento venha a ser descaracterizado -- uma posição de firmeza atenuada pela afirmação de que, mesmo num quadro de maioria absoluta, as outras forças políticas serão consultadas em questões essenciais. A Guterres seguir-se-á Fernando Nogueira, com quem o PÚBLICO encerra a série de entrevistas aos líderes dos principais partidos políticos.
A Educação, a segurança e o rendimento mínimo são os pontos essenciais do discurso de António Guterres. Em torno destas matérias pretende um amplo consenso, porque são reformas que ultrapassam o horizonte de vida de um governo. Afirma nunca ter alimentado expectativas irrealistas junto do eleitorado e, acima de tudo, diz confiar no bom senso dos portugueses. Se perder as eleições, tirará daí as consequências «que entender mais convenientes». Por agora, não está preocupado com o seu futuro no PS.
PÚBLICO -- Tem dito que formará governo mesmo se não chegar à maioria absoluta. Que limites de alterações ao seu Orçamento de Estado imporá às oposições?
ANTÓNIO GUTERRES -- Em primeiro lugar, o objectivo do PS é governar com maioria absoluta. Se não a tivermos, governaremos com maioria relativa. Como é sabido, o próximo Orçamento está condicionado pelos objectivos que têm a ver com os critérios de convergência e eu não posso, de maneira nenhuma, admitir que o PSD fosse capaz de votar contra um orçamento que cumprisse os objectivos que ele próprio aceitou internacionalmente.
P. -- Mas o PS tem apostas sectoriais que o PSD contesta. Que alterações é que tolera?
R. -- É evidente que, se essas alterações descaracterizarem o Orçamento, não serão aceites. Confio no sentido patriótico dos partidos da oposição e recordo que, quando o PSD tinha um governo minoritário, os orçamentos sempre respeitaram, no essencial, a política governamental.
P. -- Não era isso o que Cavaco Silva entendia na altura. Todos nos lembramos ainda do discurso do leite e do pão na madrugada de uma discussão orçamental...
R. -- Uma cena mais ridícula do que propriamente substancial.
P. -- Quando diz que não admite que o seu Orçamento seja descaracterizado, o que é que concretamente quer dizer?
R. -- É um cenário que não faz sentido prever a esta distância.
P. -- Há três questões fundamentais no seu discurso político: segurança, educação e rendimento mínimo. Um seu governo de minoria desafiará os outros partidos para um pacto de regime sobre estes temas?
R. -- Suponho que há matérias que justificam um pacto de regime e essas têm a ver com as grandes reformas de fundo. Têm a ver com o sistema educativo no sentido da aposta no seu desenvolvimento e têm a ver com os temas da saúde e da segurança social.
P. -- Portanto, admite uma negociação?
R. -- Mas mesmo que nós tenhamos um governo de maioria absoluta, em relação a estas matérias iremos discutir com as oposições e, se possível, iremos estabelecer um consenso em relação à forma de aplicar estas reformas. Porque qualquer destas reformas ultrapassa o horizonte de vida de um governo. E é desejável que possam persistir mesmo que, depois, naturalmente, pelo jogo democrático, a um governo do PS venha a suceder um governo de outra força política.
P. -- Não vai privilegiar nenhuma das oposições?
R. -- Penso que, à partida, devem ser colocadas todas no mesmo plano. Naturalmente que haverá maiores afinidades com uns partidos em relação a umas matérias e com outros em relação a outras. Mas, como digo, o nosso objectivo é a maioria absoluta e penso que os interesses do país só serão verdadeiramente assegurados com as condições de estabilidade política que só uma maioria dá. Penso que, neste momento, todos os estudos de opinião revelam que a força política que a pode obter é o PS; por isso, é uma boa aposta para os portugueses concentrarem os seus votos no PS.
P. -- A propósito de afinidades: Carlos Carvalhas tem insinuado tentativas de aproximação do PS ao PCP. O que é que se passa?
R. -- Não existe da parte do PS nenhuma intenção de realizar com o PCP uma negociação preferencial em relação à formação do governo. O PS tem, com todos os partidos políticos, um diálogo permanente, mas não tem com o PCP um diálogo com esse objectivo.
P. -- Então o dr. Carlos Carvalhas mente quando insinua o que insinua?
R. -- Não sei o que é que ele quer dizer com isso.
P. -- Quanto tempo é que prevê que um governo minoritário do PS possa durar?
R. -- O meu objectivo é ter um governo maioritário. Penso que um governo de maioria relativa deverá poder durar os mesmos quatro anos. Se isso não acontecer, caberá aos outros partidos a responsabilidade de o explicar ao país.
P. -- Que mecanismos tenciona incluir no aparelho fiscal?
R. -- Desde logo, o combate à fraude, que é uma forma de justiça fiscal. Isto tem a ver com organização da máquina das Finanças, que foi partidarizada pelo PSD e que, com isso, perdeu muita da sua capacidade e da sua competência. Depois, através da alteração de dois grupos de impostos: o IRS e o IRC, por um lado, a sisa, o imposto sucessório e a contribuição autárquica, por outro. No IRS, hoje praticamente só pagam impostos as classes médias e os que vivem dos rendimentos do seu trabalho. Cerca de um milhão das famílias que preenchem impressos de IRS representam uma receita completamente irrisória, enquanto se pode estimar em cerca de um milhão o número de contribuintes individuais e empresas que, na prática, têm níveis significativos de evasão fiscal. Se calhar, será bom isentar as famílias mais pobres de pagamento e concentrar toda a máquina de fiscalização naqueles que sabemos terem mais facilidade para fugir aos impostos.
P. -- Mas vai ou não precisar de mais meios para impedir essa evasão?
R. -- Penso que vai ser necessário investir muito na informatização do Ministério das Finanças e no criar regras do próprio sistema fiscal que contribuam para facilitar a detecção de fraudes. Por último, têm de ser consideravelmente reforçados os meios de acção normal dos trabalhadores das Finanças. Penso, por outro lado, que, em sede de sisa, imposto sucessório e contribuição autárquica, a questão essencial é que, hoje, a propriedade é taxada de acordo com o valor que está matricialmente estabelecido -- o que introduz as maiores distorções. O nosso objectivo é, mantendo o nível de cobrança, promover uma gradual actualização durante um período de transição de alguns anos, que permita que todos sejam tratados da mesma maneira. Isto trará as taxas da contribuição autárquica do imposto sucessório para valores extremamente baixos. E, eventualmente, poderemos reduzir ou abolir a sisa.
P. -- O período de transição poderá, de alguma forma, contemplar perdão de dívidas no IRC ou na própria segurança social?
R. -- Sou, genericamente, contrário ao perdão das dívidas. Naturalmente que as questões concretas que existem têm de ser analisadas, mas uma das questões que me parece essencial na sociedade portuguesa é tornar expedito o mecanismo de falências.
P. -- Em relação ao aparelho da administração fiscal, vai manter o actual sistema de nomeação de quadros superiores e até de chefes de repartição?
R. -- Já disse que considero totalmente inaceitável que haja cinco mil funcionários públicos nomeados com critérios de confiança política por parte do governo -- e estou a citar o número dado pelo meu adversário, mas até admito que seja maior. Acho que faz sentido que os directores-gerais sejam nomeados pelo governo, visto que são os colaboradores mais directos. Agora, ao nível dos directores de serviço e dos chefes de divisão ou de repartição, acho que é essencial que se estabeleça um sistema de concurso com júri, que possa permitir que os mais competentes e os mais capazes tenham capacidade de progredir na carreira e que o facto de ter ou não cartão partidário seja totalmente irrelevante, seja qual for esse cartão.
P. -- Tem dito que o PSD se confunde com o Estado. Como é que vai provocar essa separação e até onde?
R. -- Só se deve mexer naquelas situações e naquelas pessoas em que manifestamente há incapacidade para o desempenho das funções para que foram nomeadas. Esse é um critério que não caberá ao primeiro-ministro, terá de caber aos diversos responsáveis pelas mais diversas áreas.
P. -- O rendimento mínimo é uma das bandeiras da sua campanha. Quantas pessoas serão abrangidas e quanto vai custar?
R. -- Como sabe, não há, em Portugal, estatísticas de rendimentos. As estatísticas que existem respeitam ao consumo e, com base nela, nós realizámos os nossos cálculos, que são, portanto, relativamente falíveis. Em qualquer caso, uma avaliação por cima apontaria hoje para qualquer coisa como 40 milhões de contos, o que quer dizer 50 milhões de contos em 1999. O número de pessoas a atingir é difícil de estimar, uma vez que grande parte delas não receberão a totalidade do rendimento mínimo mas apenas a diferença entre aquilo que efectivamente auferem e esse rendimento mínimo. Mas admitimos como mais provável (e estou a dar um número meramente dubitativo) que seja atingido um total de 100 mil famílias.
P. -- Quanto à questão da segurança, acha sinceramente que o aumento das penas em mais dois ou três anos sobre os 15 anos actualmente previstos para traficantes vai produzir algum resultado?
R. -- Não creio que esse seja o instrumento essencial. Mas, quando se aumenta a pena máxima para homicídio, é natural que se aumentem as penas máximas para crimes de gravidade semelhante ou comparável. Do meu ponto de vista, o tráfico de droga está nesse caso e tem sentido que sofra um ajustamento semelhante. O crime combate-se fundamentalmente na rua e, para nós, a questão essencial é o policiamento nas ruas, seguido da eficácia no funcionamentos dos tribunais e só em terceiro lugar vem a questão das penas.
P. -- Há quem diga que verdadeira revolução está na alteração do código de processo penal.
R. -- O nosso problema tem a ver com o código de processo penal, com a criação dos assessores judiciais para que os juízes se possam dedicar apenas à função da judicatura e não desenvolvam um conjunto de trabalhos burocráticos. E tem a ver com a própria melhoria significativa dos aspectos administrativos do funcionamento dos tribunais. É necessário ter em conta que muitos julgamentos estão atrasados por adiamentos, que há que limitar fortemente. Queremos introduzir penas contra aqueles que fazem obstrução à justiça.
P. -- Se for primeiro-ministro, tenciona lançar o debate em torno da liberalização das drogas?
R. -- A liberalização das drogas não é um debate que se possa fazer à escala de um país. Se um país optar pela liberalização das drogas, toma uma atitude suicidária, transformando-se num santuário dos «gangs» das drogas. Há muita gente que está convencida de que a batalha contra os traficantes está perdida...
P. -- Grandes penalistas , inclusive...
R. -- ... e que é preferível integrar a droga num circuito semelhante ao do álcool. Não estou seguro de que assim seja, mas estou seguro é de que tentar fazer isso em Portugal seria um total suicídio.
P. -- Mas admite a importância dessa discussão?
R. -- Tudo deve ser discutido e, em particular, a distinção entre o tráfico e o consumo. Mas o mais importante é darmos um passo em matéria de prevenção -- o actual volume de meios é ridículo -- e em matéria de tratamento e de reinserção. Estima-se em cerca de 100 mil o número de drogados pesados, admite-se que um quarto deles queira ser tratado e não há capacidade para o fazer. Isso exigiria cerca de 400 primeiras consultas por semana e cerca de seis mil consultas de acompanhamento. Exigiria ainda cerca de duas mil camas e estamos muito longe destes números.
P. -- O que é faria ao Projecto Vida?
P. -- O problema desse projecto é a sua dimensão. É necessário ter muitíssimo mais meios para uma acção desta natureza. E é dinheiro muitíssimo bem gasto, porque o prejuízo causado pelo crime e pela droga é muito maior do que tudo o que possa ser gasto a combatê-lo.
P. -- Passemos à «paixão» de um governo socialista: a escola. Já disse que vai abolir as propinas...
R. -- Não, não. Disse que as ia suspender. Somos um país pobre e admito que seja justo que ainda durante algum tempo as famílias mais ricas suportem parte da educação superior dos seus filhos. Mas é preciso que sejam, de facto, as famílias mais ricas a fazê-lo. E isso não é o que se passa hoje em Portugal. São conhecidos inúmeros casos de filhos de trabalhadores por conta de outrem com ordenados médios ou relativamente pequenos que pagam propinas.
P. -- Diz que vai suspender as propinas. Não lhe parece politicamente difícil voltar a impor o sistema?
R. -- Tenho uma grande confiança na capacidade dos portugueses para aceitarem assumir as suas próprias responsabilidades, desde que isso seja feito com critérios de evidente justiça.
P. -- E quanto vai custar suspender as propinas?
R. -- Não tenho, neste momento, o número de cor, mas devo dizer que é uma percentagem irrisória das despesas do ensino superior.
P. -- Tem falado na necessária valorização do papel do professor. Isso contempla aumentos de ordenados?
R. -- Há, em primeiro lugar, uma valorização do seu estatuto, o respeito pela sua profissão, o fornecimento de meios para que a possam exercer de uma forma que os realize e os motive. Mas, em muitas situações, poderá haver ajustamentos de natureza salarial que se justifiquem. Vou discuti-los com os sindicatos com toda a franqueza, dizendo que tenho este tecto de aumento da despesa na educação. Aceito que uma parte possa ser para melhorar a situação dos professores, mas é fundamental que os professores compreendam que a parte mais substancial deste aumento é para melhorar as condições do ensino.
P. -- Aceita aumentos mas não os reivindicados pelos sindicatos?
R. -- Como disse, estou disponível para conversar com eles e estou convencido d que eles próprios têm o sentido patriótico de que mais vale melhores condições de trabalho do que apenas um aumento significativo de ordenado.
P. -- Vai introduzir mecanismos de fiscalização do ensino universitário privado?
R. -- O esquema de avaliação que existe para as universidades deve ser completado por um esquema exterior à própria instituição universitária, recorrendo eventualmente a contributos internacionais, e deve estender-se quer ao ensino público quer ao privado.
P. -- Que lição é que tirou do «caso Candal»?
R. -- A lição fundamental que tirei é a de que, na política, não pode haver ataques pessoais. Quando isso acontece com alguém no PS, há que agir com firmeza. É um exemplo que gostaria de ver seguido por outros partidos, nomeadamente pelo PSD em relação ao dr. Alberto João Jardim.
P. -- Qual o futuro de Candal dentro do PS?
R. -- Essa pergunta, desculpe que lhe diga, não tem sentido.
P. -- Porquê?
R. -- É o futuro que os seus méritos e a sua capacidade justificarem.
P. -- O eleitorado do PS está com uma enorme expectativa quanto à possibilidade de o PS vir a constituir governo. Mas o senhor já tem afirmado que a margem para a governação é apertada. Não vai ter de arrefecer essas expectativas porque pode correr o «risco» de vir a ser primeiro-ministro?
R. -- Da minha parte, nunca alimentei expectativas irrealistas e confio no bom senso dos portugueses.
P. -- Mas as expectativas existem...
R. -- O facto de haver uma margem apertada do ponto de vista financeiro não quer dizer que muitas coisas de natureza qualitativa não sejam feitas. Por exemplo, é muito importante que um novo governo não impeça o líder da oposição de visitar uma escola ou de fazer um debate numa lota.
P. -- Para si, estes casos são o exacerbamento de uma cultura antidemocrática ou casos pontuais?
R. -- São simbólicos quanto a uma cultura autoritária que, obviamente, não põem em causa a democracia mas revelam que aqueles que agem num sistema democrático porventura teriam a mesma facilidade de agir num sistema antidemocrático.
P. -- O que é que quer dizer com isso?
R. -- Estritamente aquilo que disse. O que tem de haver é um novo estilo de poder, uma dessacralização do poder, mais respeito pelos cidadãos, pelas oposições, pelas magistraturas, pelos tribunais, pelo Presidente da República. Isso é muito importante e não custa dinheiro. Há muitas coisas a fazer no domínio das reformas das políticas sociais que não custam dinheiro. Há naturalmente algumas que custam, mas também há muito desperdício e há muito dinheiro mal gasto e muito «elefante branco».
P. -- A maior parte das expectativas das pessoas são dirigidas precisamente para aquilo que custa dinheiro...
R. -- E eu estou esperançado em que uma política económica mais adequada garanta níveis de crescimento maiores, que permitam satisfazer uma boa parte dessas expectativas, embora seja impossível satisfazer todas.
P. -- É notório que Cavaco Silva entrou na campanha eleitoral. Agora é ele o seu adversário?
R. -- Não. Limitar-me-ei a responder-lhe sempre que ele me atacar. E acho estranhíssimo que a campanha do PSD se resuma a dizer mal do PS, como se o PS tivesse alguma responsabilidade pelo que se passou nos últimos quatro anos. Não há uma ideia, uma proposta, uma luz de esperança, uma tentativa de gerar uma nova confiança. A única coisa que fazem é meter medo ao país com um governo do PS.
P. -- E, se perder as eleições, quem acha que, no PS, dirá: «Estou em estado de choque»?
R. -- Se perder as eleições, tirarei na altura as consequências que entender mais convenientes. Não estou nada preocupado com esse facto.
P. -- Mas admite que alguém ponha em causa a sua liderança?
R. -- Se isso acontecer, na altura se verá.
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