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<DOCNO>PUBLICO-19951101-070</DOCNO>
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<DATE>19951101</DATE>
<CATEGORY>Diversos</CATEGORY>
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Pedro Arroja, um homem das Arábias
(...) Por várias razões que não vale a pena realçar aqui, a TSF marca um estilo de difusão radiofónica que pode considerar-se um modelo. Sobretudo pela acessibilidade de participação do público e pela oportunidade que consegue ter na escolha dos temas.
Porém, diariamente ouvimos nesta estação um senhor de voz calma e pausada, aparentando uma ciência e conhecimento sólidos e reflectidos, transbordando de confiança e certeza. Sim!... Sobretudo transbordante de certeza em tudo o que afirma!... E parece não haver limites para os assuntos sobre que emite doutas opiniões. Recordo-me de temas como a preservação do ambiente, onde afirmava que era uma preocupação sua mas que não poderia ser um pretexto para evitar o progresso; lembro-me das razões porque o Futebol Clube do Porto ganhava campeonatos de futebol (assunto sobre que me abstenho de fazer qualquer comentário); das vantagens da legalização do comércio e consumo de drogas, sem proferir qualquer palavra sobre as consequências internacionais e, sobretudo, europeias que acarretaria uma posição unilateral como a que ele protagoniza. E agora surpreende-nos com uma tese muito mais interessante: o ordenado mínimo nacional como obstáculo à luta contra o desemprego.
E foi este último programa que abalou a minha anterior indiferença pela arrojada mediocridade intelectual do senhor Arroja. Pretende ele que, se não fosse obrigatório pagar um ordenado mínimo nacional, nunca ninguém se lembraria de substituir mão-de-obra humana por maquinaria, reduzindo-se assim a taxa de desemprego. Uma dedução verdadeiramente notável!
Esqueceu-se até que, quando falava de preservação do ambiente, apontava as vantagens da industrialização como paradigma do desenvolvimento e da elevação dos padrões de vida. De tal forma estava seguro desta atoarda que não hesitava em dizer que, em prol do desenvolvimento, se deveria sacrificar o ambiente, sem acrescentar que essa degradação não compromete os padrões de vida de alguns, mas de todos. É algo que não tem solução e pode comparar-se a um suicídio colectivo que só não é visto por quem não acredita que isso suceda nos nossos tempos ou por quem vai encontrando meios económicos de não notar esta degradação. Podia lembrar ao sr. Arroja que o presidente Nino Vieira também não repara nas condições de vida do seu povo, precisamente porque evita parar pela Guiné, preferindo outros locais mais agradáveis, onde também põe os seus filhos a estudar; todavia, não me parece que ele compreenda a alusão.
Agora temos uma outra ideia! Algo verdadeiramente emocionante: diminuir ou acabar com o ordenado mínimo nacional!...
Eu pergunto a mim próprio como é que ainda ninguém se havia lembrado desta solução? Ou melhor, como é que uma medida que teve tanta popularidade durante largos séculos foi esquecida em pouco mais do que cem anos?... Pagar menos?... Pois é!... Mas... e se não se pagasse nada? Seria muito melhor! Para quê ficarmos pelas meias tintas? Substitui-se o ordenado pelo fornecimento de alimentação (por exemplo, um dedal de azeite e um pedaço de pão duro para a açorda), por um monte de palha debaixo de um telhado onde não chova e... pimba, damos uma valente machadada na taxa de desemprego. Posso imaginar a venda do aspirador, da enceradora, da máquina de lavar, da picadora, da varinha mágica, etc., substituindo tudo isto por «algo» muito mais barato. Não só se paga menos e se ganha mais, como ainda se presta um elevado serviço ao país, baixando-lhe a taxa de desemprego... Talvez até possa substituir o fornecimento de energia da EDP por um gerador a pedal?
Pena é que esta forma de «combater o desemprego» tenha sido abolida durante o século XIX. Uma consequência «nefasta» da Revolução Liberal (1834), que nunca teria acontecido sob o governo do senhor D. Miguel: um homem avisado e consciente da necessidade de combater o desemprego com perseverança.
O sr. Arroja não tem vergonha nenhuma!... Como é possível proferir, com aquela voz tão cândida, as mais horríveis afirmações?... O que pensará ele sobre si próprio?... Talvez julgue que o seu raciocínio é pragmático em vez de monstruoso... Monstruoso?... Não! Não! Perdoe-me o «fantasma da ópera» que, afinal, sabia amar! Este «género» é um produto recente e ainda não tem adjectivos classificativos.
Admira-me muito como é que estas pessoas conseguem dormir descansadas e, sobretudo, como têm a lata de vir expressar-se em público desta maneira. Em tempos passados, sempre houve quem pensasse assim; contudo, não ousava exprimi-lo porque havia uma consciência colectiva que considerava estas ideias como perversas. Era assim como ter vontade de matar alguém... pensava-se mas não se dizia.
Vai longe este Arroja!... Pelo menos é isso que ele julga. (...)
Luís Semedo de Matos
Barreiro
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