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<DOCNO>PUBLICO-19951110-053</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19951110-053</DOCID>
<DATE>19951110</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
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Moçambique ou Mozambique?
Fernando Jorge Cardoso*
«The only interesting answers are those which destroy the questions»
Susan Sontag
Moçambique vai entrar para a Commonwealth? Talvez. E daí?
A apreciação da candidatura de Moçambique a membro desta organização na cimeira de chefes de Estado, de 10 a 13 de Novembro, em Auckland, tem levantado apreensões em diversos quadrantes da vida portuguesa, que apontam uma progressiva perda de influência de Portugal naquele país e na África Austral e prenunciam a substituição, a prazo, do português pelo inglês em Moçambique.
Ambas as questões pouco têm a ver com a Commonwealth.
Desde logo, a aceitação de Moçambique está longe de ser pacífica, por abrir um precedente no seio de uma organização cujos membros são ex-colónias britânicas que têm o inglês como língua oficial. O processo de adesão dos Camarões, membro a partir de 1 de Novembro, durou seis anos e não quebrou esta regra, na medida em que parte significativa do território daquele país esteve sob administração britânica, sendo o inglês um das suas línguas veiculares.
A Commonwealth, constituída pelo Reino Unido e ex-colónias, não possui tratado ou regulamento escrito (que obrigue, por exemplo, à adopção do inglês como língua oficial). A ajuda bilateral britânica, embora essencialmente virada para os países membros, inclui igualmente os não membros -- como Moçambique. Na Commonwealth existem oito Programas e Fundos (de dimensão pouco significativa, embora não negligenciável), dos quais o mais significativo é o da Cooperação Técnica.
A relevância da Commonwealth no sistema internacional é essencialmente política, em particular pela influência das cimeiras. Recordemos, por exemplo, a sua importância na mudança da política britânica face à ex-Rodésia do Sul no final dos anos 70 e, mais tarde, no endurecimento das posições face ao regime do «apartheid». Na cimeira de 1991, foi aprovada a Declaração de Harare, reafirmando, entre outros aspectos, o apoio às transições democráticas, aos Estados de direito e ao respeito pelos direitos humanos.
Neste quadro, a candidatura moçambicana tem objectivos claramente políticos e visa integrar o país num fórum internacional prestigiado, onde já se encontra a grande maioria dos parceiros da SADC. A iniciativa do Governo não deve, pois, ser confundida com preferências pela Commonwealth em detrimento da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, ou com pretensões de substituir o português pelo inglês.
O verdadeiro debate respeita às realidades e tendências verificáveis em Moçambique e na região e à orientação e eficácia da cooperação portuguesa.
Uma forma de abordar esta questão é perguntar quais os interesses no reforço das relações Portugal-Moçambique. Julgo que o interesse no reforço da cooperação entre os dois países é, para já, mais crucial para Moçambique do que para Portugal, que não tem capacidade de influência decisiva nas políticas moçambicanas -- e nesta fraqueza reside, paradoxalmente, parte da sua força.
Moçambique, recentemente sujeito a um processo de desestruturação social violenta, enfrenta desafios essenciais à sua afirmação como país soberano. Um desses desafios tem a ver com o reforço de elementos identitários que, no interior das fronteiras, criem e alimentem interesses e afinidades comuns -- em paralelo com as tradições e aspirações locais. Outro desafio refere-se ao reforço dos elementos de identidade que distinguem o país dos seus vizinhos -- sem que isso obste aos actuais esforços de integração regional.
Sendo o domínio da língua também um instrumento de poder, o português tem a ver com ambos os desafios. A língua portuguesa é, neste contexto, mais importante por razões de ordem política que por razões de ordem cultural, o que quer dizer que a gramática e o dicionário prevalecem sobre os «Lusíadas».
Nestas circunstâncias, independentemente de a alfabetização continuar ou não a ser efectuada em português, porque não apoiar a investigação, a feitura, ou a actualização e reedição de gramáticas comparativas e dicionários entre o português e as línguas locais -- que aliás, no passado, foi apanágio da obra educativa de várias agremiações religiosas, incluindo a igreja católica. Só numa visão muito estreita se poderão vislumbrar perigos em acções deste tipo para a continuação do português como língua oficial.
O segundo desafio prende-se com a preservação do português como língua de afirmação de especificidade perante vizinhos -- este aspecto é claramente estratégico para o país e é partilhado por elites no poder e na oposição.
Tal facto não obsta à necessidade de os moçambicanos desenvolverem o domínio do inglês como língua de trabalho. Seria ingenuidade pensar que a inevitável uniformização de processos e regulamentos decorrente do aprofundamento da integração regional fosse feita noutra língua.
O que se pode inferir destes factos para o relacionamento Portugal-Moçambique? Talvez Portugal possa contribuir mais fortemente para a consolidação do processo de transição democrática em Moçambique, através do reforço da cooperação nos domínios político, judicial, militar, educacional e dos media, bem como do apoio a organizações da sociedade civil. Estes domínios serão, porventura, tão importantes como os económicos e empresariais.
Não creio que Moçambique seja admitido a curto prazo na Commonwealth. Mas, se o for, tal não afectará automaticamente as relações com Portugal, nem as ligações construídas ao longo do tempo, não obstante a persistência, de ambos os lados, de discursos e práticas de algumas personalidades que relevam de complexos colonizado-colonizador, de meros interesses pessoais ou da dificuldade em não conseguir vislumbrar mais que o próprio umbigo.
*Investigador do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais
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