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<DOCNO>PUBLICO-19951126-077</DOCNO>
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<DATE>19951126</DATE>
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Retrato da Semana
Ao contrário das aparências, a última campanha eleitoral foi esclarecedora. Com efeito, a consciência com que se ficou, depois dos debates e da propaganda, foi de que as dificuldades nacionais eram grandes. Isto, apesar de o PSD ter tentado esconder a realidade, para não se autocondenar; o PS não ter insistido, a fim de não gorar expectativas eleitorais; o PC ter repetido o que sempre disse; e o PP ter dado a entender que tudo era possível.
Dois meses depois das eleições, ainda antes de chegarmos ao Orçamento de Estado, o panorama começa a ficar claro. A situação financeira portuguesa é frágil e a tendência é para o agravamento. As capacidades económicas portuguesas são muito débeis e os horizontes inquietantes. A disciplina monetária europeia vai exigir amputações dramáticas. As outras políticas europeias vão impor restrições quase insuportáveis. Os mecanismos fundamentais do Estado-providência estão esgotados e necessitam de intervenção rápida. A administração fiscal não está à altura das exigências. Eis quanto, pecando por defeito.
Sendo evidente que, fora da União Europeia, tudo será pior, percebe-se quão estreita é a via. Se o pessimismo é paralisante, o optimismo é mera estupidez.
Compreende-se o orçamento suplementar: um epitáfio para Cavaco Silva. É a primeira medida real da dificuldade. Nada de comparável com o que se segue, o Orçamento de 1996, que não terá boas notícias para ninguém. E de pouco adianta sublinhar as responsabilidades de Cavaco e dos seus governos. Primeiro, porque o PSD já não tem o mesmo chefe, enquanto o mesmo chefe já não tem partido. Estão ambos branqueados. Na televisão, o ex-primeiro-ministro (o prazer que dá chamar-lhe «ex»!...) mostrou a sua disposição: não tem nada a ver com o que se passou. Segundo, porque as culpas dos outros não enriquecem o Tesouro, nem aumentam a produção. É, de qualquer maneira, útil que tenhamos, até Janeiro ou Fevereiro, a totalidade dos diagnósticos, por problema e por departamento.
Os socialistas têm pouca sorte. Mal chegam, a vida começa a andar para trás. Ou antes: a vida começa a andar para trás e eles chegam. Os que mais gostam de distribuir, são os que menos têm. Paciência. Poderão é tentar fazer dessa cruel ironia a sua grandeza. Eis porque as relações pessoais e políticas entre Guterres e Sousa Franco estão no centro da política. Nem Guterres é capataz, nem Sousa Franco é ajudante: as relações entre os dois serão mais complexas do que aquelas que a memória pode ir buscar à História recente.
Os socialistas têm, no seu património, alguns casos em que deverão reflectir. Para evitar, por exemplo, o modelo do I Governo. Nessa altura, obcecado justamente pela questão política, o governo sacrificou Medina Carreira. Este resistiu quanto pôde ao facilitismo e aos turbilhões do sector público e das «intervencionadas». Mas, quase sozinho, esteve meses a ser mordido por ministros e secretários de Estado. A prazo, os socialistas viriam a ser afastados, sendo que a coligação entre o PS e o CDS foi uma espécie de cuidado intensivo para uma morte assistida. No II Governo, o episódico Vítor Constâncio não chegou a constituir modelo.
Já no bloco central, houve tempo e história para construir um padrão. Que, do mesmo modo, se recomenda seja evitado. Ernâni Lopes foi o autor, quase ia a dizer o executante, do maior aperto de austeridade que Portugal conheceu. No último trimestre de 1985, as estatísticas, sem intervenção de Cavaco, já lhe davam razão, mas era tarde. Este ministro das Finanças, ao contrário do primeiro exemplo, tinha o apoio do primeiro-ministro. Além disso, os ministros tinham termos de referência idênticos: apertar, apertar e apertar. O que falhou, então? A insensibilidade ao país foi fatal ao Governo. A incapacidade para explicar ao povo o que se passava foi trágica para o PS. Não acredito que se possa entusiasmar, ou mobilizar, o país para taxas de juro de 40 por cento ou para centenas de milhares de trabalhadores com salários em atraso.
Mas acredito que seja possível explicar. Mostrar razões. Demonstrar preocupação. E dar o exemplo. É, aliás, curioso notar que a arrogância política, depois de ter ajudado a derrotar os revolucionários de 1975, já derrubou duas maiorias: a do bloco central e a de Cavaco Silva.
Soares e Medina Carreira, por um lado; Soares e Ernâni Lopes, por outro: eis dois modelos, diferentes, a evitar. A terceira via, também a pôr de parte, seria a de um ministro das Finanças acima ou fora do Governo. Resta a Guterres e Sousa Franco encontrar o seu modelo. Na galáxia governamental, pode ser a constelação mais frágil ou a mais sólida. O seu bem será o nosso.
Há anos que se fala da privatização dos notários, medida indispensável para a diminuição dos trabalhos e custos burocráticos. Laborinho Lúcio decidiu-se, há cerca de um ano, e aprovou o decreto adequado. Acontece que se tratava de uma falsa liberalização, pois mantinha o condicionamento corporativo. Além disso, cometeu o erro de querer aprovar a lei em período de campanha, sem Parlamento. Soares vetou. Ao novo Governo cabia melhorar a lei e voltar a aprovar. Em vez disso, Vera Jardim suspendeu tudo e deu sinais de não querer privatizar, nem abrir a profissão. Eis um passo atrás. A corporação dos notários, com fortes interesses no sistema estatal, pesa mais do que milhões de «utentes».
Que dizer de Cavaco Silva na televisão? Está convencido de que, dentro de dois anos, nada estará de pé, o Governo não se aguenta, o PSD estará esfrangalhado e dele tudo dependerá. A sua determinação, impossível de simular, tem a exacta medida do desastre que vaticina para o país.
Quer para ele o que negou a Mário Soares. Quer intervir em todos os domínios. Quer representar, liderar, orientar. Quer ter funções internas e externas. Quer ser parceiro, cooperante, conselheiro e estratego. Quer tudo.
Deixou prosa de antologia. Em relação à China, age com a União Europeia. A propósito do referendo, de que não gosta, e da regionalização, que não quer, agirá de acordo com o Governo. Na Bósnia, fará tudo de acordo com a NATO. Não lê os jornais, porque Kennedy também não lia. A sua forma de ler os jornais é aquela que lhe «foi indicada pelos assessores». «O meu percurso de vida é um percurso de verdade.» «Eu falo sempre verdade.» «Coloco sempre Portugal em primeiro lugar.» Está a ficar parecido com Evita Perón.
Manuela Moura Guedes volta ao Parlamento. Já não é incompatível. Ainda bem. Passados estes primeiros momentos, compete agora aos deputados rever rapidamente a respectiva lei, um dos maiores abortos políticos de que há memória.
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