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<DOCNO>PUBLICO-19951205-116</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19951205-116</DOCID>
<DATE>19951205</DATE>
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Arquipélago dos Bijagós
A terra do povo perfeito
Eduardo Dâmaso
Com o pescoço enfiado numa enorme bóia preta, nada mais do que uma câmara de ar de uma roda de camião, Cumprido espreita o oceano com uns olhos respeitosos mas que parecem tocados por uma nuvem de nostalgia. Estão postos no horizonte que se vê para lá das ilhas de Soga e de Rubane, e que é abraçado por uma névoa que não deixa ver para que lado se espraiam as águas que fluem pelo corredor natural que Bubaque também ajuda a formar. Cumprido para ali está, sentado de perna traçada em cima de um banquinho de pedra que em tempos idos o colonialismo português construiu na praia das Escadinhas, que é a que está mais à mão para quem acaba de chegar à ilha de Bubaque.
Há umas duas horas que ali está, imóvel, com os olhos no fim das águas. Mas se lá estivesse há muitos dias seguidos ninguém estranharia. O arquipélago dos Bijagós é uma terra onde as pessoas têm o hábito ancestral de se ficar por um rochedo, por uma praia perdida ou por um campo verdejante a olhar o lento movimento das águas ou a ouvir o murmurar da maré alta. Tardes inteiras, dias inteiros, mais com a tranquilidade de quem contempla do que com a irrequietude de quem sonha. Como se estivessem fora do tempo, ou ou ele simplesmente não existisse, não atropelasse os dias e as noites.
Cumprido, porém, apesar de amar a sua ilha e o oceano que a cerca, tem vontade de abalar e, por isso, os seus olhos são mais de quem sonha. Cada sexta-feira e domingo que chegam ou partem os barcos de Bissau, o Sambuia e o Féfini, corre até ao porto e, ao fim da tarde, costuma ir para a praia das Escadinhas. Toma uns banhos e fica por ali a rebolar-se na areia ou tão-só, sentado num dos banquinhos, a olhar o mar. Já passou os 15 anos, já deixou a escola e, de agora em diante, sabe que a sua vida será um rolar incessante de dias e noites iguais. É o trabalho da pesca, cujas artes já conhece de pequenino e que ocupam toda a família, que o espera. Para toda a vida, apesar de ter pensado, na ingenuidade dos seus poucos anos, que as coisas bonitas que aprendia na escola lhe dariam a oportunidade de escolher outra vida.
-- Àmigo, quiria estudá...
-- E que gostavas de fazer quando fores grande?
-- Sempre estudá... nã... -- fica pensativo, sabe que não poderia ficar eternamente na escola, mas também não tinha pensado no assunto.
Que sentido faz a pergunta, afinal, numa ilha onde as opções são tão poucas e as de sempre. Agricultores, pescadores, mão-de-obra indiferenciada que dá serventia a trabalhos ocasionais. Estas são as poucas coisas a que se pode aspirar quando se for grande nos Bijagós.
Má sorte
A Cumprido, como a muitos outros adolescentes dos Bijagós, não é o trabalho que o assusta. Lembram-se sobretudo da má sorte da sua gente que é deixada ali na lonjura do oceano sem meios de comunicação, quase sem transportes, sem medicamentos, muitos sem trabalho. Lembram-se dos meninos mais pequenos que morrem todos os dias, sobretudo na época das chuvas, com paludismo, cólera, diarreia, por falta de assistência. E é essa tragédia das pessoas que lhes dá raiva e vontade de se ir embora, de dizer adeus ao arquipélago bijagó, um dos mais belos berços da humana gente que ao mundo foi dado. O fascínio de partir para Bissau enche a alma dos jovens em Bubaque, sobretudo quando vêem regressar os que já por lá tentam ganhar a vida com mais dinheiro num bolso do que eles ganham em meses de faina.
Os anos 90 são para o povo bijagó mais um capítulo do grande livro de resistência que é toda a sua história. Do século XV em diante, os seus mares e as suas ilhas foram espaço de navegantes aventureiros, de pirataria e tráfico de escravos, terra prometida para colonos ingleses, franceses, alemães e portugueses, campo de batalha para conter as hordas de outras etnias, sobretudo biafadas, que, historicamente, foram os maiores adversários que conheceram.
Do povo bijagó desconhecem-se ainda as origens, permanecendo essa questão em aberto, como assinala uma investigação do padre Luigi Scantamburlo -- que viveu em Bubaque nos idos anos de 1975 e 1976 --, traduzida para português e que representa a sua tese de doutoramente em Antropologia pela Universidade Wayne State, de Detroit, Estados Unidos. Mas sabe-se desse povo que só se dedicou às manhas e artes da guerra quando sentiu ameaçada a sobrevivência.
Em 1882, já depois de reconhecidos os direitos dos portugueses ao arquipélago e de sobre eles ser aposta a chancela da antiguidade relativamente às pretensões de ingleses e franceses, o que ocorreu em 1870, um padre nativo da Guiné, M. M. Barros, estudou em profundidade as origens do Iadjoco ou povo perfeito, como se autodenominam. Este padre concluiu que, por volta do século XVI, os bijagós eram escravos, oprimidos pelos biafadas, que conseguiram libertar-se das correntes e dos trabalhos forçados e procurar refúgio nas ilhas de Orango e de Caraxe, onde finalmente encontraram coragem e forças para combater a infâmia a que estavam submetidos.
Inventivos e pacíficos
Mais tarde, o cruzamento com a etnia Papel, uma gente mais fadada para a guerra do que para a paz, acentuou o perfil guerreiro dos bijagós, ao lado de outras características ancestrais, que o dão como um povo inventivo, pacífico e muito independente. E, talvez por estarem habituados a uma vida livre e independente, não se deram bem com os sucessivos colonialismos -- inglês, alemão e português --, que lhes impuseram modos de vida radicalmente distintos dos que tinham até aí.
Os projectos das quintas experimentais dos alemães, uma fábrica de óleo de palma, a construção de casas, estradas e do porto de Bubaque retiraram os bijagós da agricultura, o que, sublinha Luigi Scantamburlo, foi uma violência psicológica que "quebrou para sempre o ritmo cíclico [daquela actividade] que possuíam há séculos". Na época das chuvas, trabalhavam no campo e, no tempo seco, dedicavam-se à pesca e à apanha de frutos. Cultivavam mandioca, amendoim, feijão, arroz, tinham mangueiras, papaieiras e uma das grandes riquezas das ilhas, a palmeira de óleo. Hoje, grande parte dos agricultores dedica-se apenas à recolha do chabéu e, mesmo assim, confronta-se com graves dificuldades de venda das produções.
Esse drama humano de quem tem uma história de resistência percebe-se ainda em Bissau logo que se embarca. Às oito e meia de uma manhã chuvosa, com o cais de Pidjiguiti transformado num caos de poças de água lamacenta, pasto apetecido de porcos que chafurdam, há gente que corre no afã das cargas e descargas, táxis a cair de podres que despejam passageiros. Os dois barcos que asseguram as ligações a Bubaque são duas velhas carcaças apinhadas de gente no que pomposamente chamam a "segunda classe" mas que se aproxima muito mais dos porões malcheirosos de um navio de carga. Daqueles que não conhecem outras rotas senão as que unem velhos portos africanos, antigos entrepostos de opressão racial, hoje verdadeiras bombas bacteriológicas.
As pessoas misturam-se com porcos e galinhas, acotovelam-se umas às outras, quase a deitar por fora de bordo, e, ao meio-dia, a situação piora quando o odor intenso do peixe frito se mistura com a urina que os mais atrevidos vão deixando nos recantos escuros da sombra de uma lona esburacada estendida ao comprimento do convés.
Há também uma primeira classe, junto à cabine de navegação, mas que também costuma ir sobrelotada. São quatro a cinco horas de viagem, de pé, em que os passageiros aproveitam para beberricar umas cervejas geladas, o que, para lá de deixar no rasto dos barcos uma pista de centenas de garrafas deitadas com desprezo às águas, não poucas vezes acaba em tragédia. Os casos de morte por afogamento ou as cenas de pancadaria pelas maiores futilidades que caibam na imaginação representam episódios frequentes neste trânsito incessante do Féfini e do Sambuia entre Bissau e Bubaque.
A pérola de Cabral
Defronte da ilha das Galinhas, a primeira do arquipélago bijagó quando se viaja de Bissau e albergue de uma antiga prisão colonial, o barco faz uma paragem ao largo. Espera por uma canoa que assegura a ligação com a ilha -- a única a partir de Bissau. Mas esta sempre é uma ilha privilegiada quando comparada com as outras do arquipélago (59, no total, incluindo ilhéus e ilhotas, embora apenas 19 ou 20 sejam habitadas), que não dispõem sequer do transporte de passageiros e carga ligeira por piroga. Nem ilhas mais importantes como Rubane, Canogo, Meneque, Orango, Orangozinho, Uno, Canhabaque, Caravela ou Unhocomo recebem visitas de barcos de transporte regular. Um isolamento que se confunde com o carácter solitário dos seus homens.
O abandono, apesar de ser a atitude historicamente dominante na relação do continente com o arquipélago, nem sempre foi a realidade mais visível das ilhas, inclusive de Bubaque. Depois da independência da Guiné-Bissau, foi construída uma estrada asfaltada que rasga os 48 quilómetros quadrados de Bubaque entre a povoação e esse hino à natureza que é a praia de Bruce, situada no extremo meridional, as ligações com Bissau eram asseguradas por pequenos aviões, que dispunham de uma pista em terra batida mas de excelente visibilidade. Todos os sábados chegava um barco com capacidade para 200 pessoas, foi construído um hotel e sobre a mesa estavam outros projectos para Bubaque. Falava-se num aeroporto a sério, em mais hotéis, em infra-estruturas. Intenções que se foram perdendo no tempo e varridas para o fundo daqueles mares de águas cor de jade.
Lembram-nos agora, com o ano de 1995 a correr, que o arquipélago era, na década de 70, a pérola do então Presidente da República da Guiné-Bissau, Luís Cabral, que costumava passar as férias em Bubaque, numa casa de arquitectura arrojada, hoje em estado de acelerada degradação.
Seria mesmo em Bubaque que Luís Cabral viria a receber a notícia da sua destituição do cargo, na sequência do golpe de Estado realizado por «Nino» Vieira em 1981, ou "movimento reajustador", na terminologia oficial do Estado guineense. Mas até aí, por ser a ilha do coração de Luís Cabral, Bubaque receberia as graças de um filho dilecto, um pouco ao contrário do resto do país, que se afundava na míngua de investimento público, nas carências de toda a ordem e na fome que ameaçava aparecer em força.
Passado esse esplendor temporário, gerado pela afeição particular de um Presidente, Bubaque é uma povoação que se enterra todos os dias na lama que escorre da sua terra vermelha em épocas de chuva e enxurradas. Para o viajante que hoje desembarcar no seu porto, o cenário é, no mínimo, desolador. Os escombros de uma velha fábrica de extracção de óleo de palma, construída pelos colonizadores alemães ainda antes da I Guerra Mundial, são um dos "traços" da arqueologia das várias colonizações sofridas pelo povo bijagó, que impressiona, pelo abandono e degradação, quando ainda se vem no mar.
É um monumento de ferro-velho, de caldeiras entupidas pela ferrugem, um buraco esconso que apenas serve, e mal, para fugir à chuva ou ao sol. Um péssimo cartão de visita, mesmo para o turismo militante, chamado de "aventura", que busca o sentido e a emoção da descoberta calcorreando longínquas paragens, disposto a superar toda a sorte de obstáculos e dificuldades que a aproximação à vida selvagem ou à natureza no seu estado mais puro em regra coloca.
O esqueleto da antiga fábrica debruça-se sobre o cais do porto de Bubaque. Serve de poiso para as dezenas de adolescentes que se acotovelam nas alturas dos velhos silos que abanam e assobiam às rabanadas de vento para melhor assistirem ao afã do desembarque da carreira marítima de Bissau. O Sambuia encosta a um misto de paredão de cimento e rochas, porque chamar-lhe cais é um notório exagero. Todavia, o desnível entre o barco e o tal paredão levanta grandes problemas ao desembarque de pessoas mais idosas. À nossa frente, um velho cabo-verdiano em visita à família, provavelmente a última, pois sofre da doença de Parkinson, só consegue sair do barco com a ajuda de quatro homens mais novos. E os dois que estão em terra, só com grandes artes de equilibrismo não se estatelam nas águas emporcalhadas.
Para os que procuram conciliar discursos de progresso com a preservação do ambiente e da riquíssima cultura do povo bijagó, a ausência de mais transportes, mais rápidos e com melhores condições de atracagem, são o primeiro obstáculo a um maior desenvolvimento do turismo na ilha, encarado como uma fonte alternativa de rendimentos para um povo que vive da pesca e da agricultura mas, até aqui, em práticas de sobrevivência cada vez mais difíceis.
Fitas italianas
Depois do velho cabo-verdiano, saltam borda fora, num complicado malabarismo de pernas, braços e mochilas, três mulheres de meia-idade, europeias, acompanhadas por um adolescente bem-vestido e de óculos escuros que, confidenciaram-nos, se esforça por ser o patrão dos guias e angariadores de clientes para as casas que, em Bubaque, também recebem turistas. Com tiques de mafioso à italiana, o rapaz esbraceja para uns amigos que lhe dão as boas-vindas num pequeno barco turístico mas, ao saltar borda fora, estatela-se no cimento e escorrega quase até à água. Agarra-se a uma pedra saliente, consegue içar-se, com ajuda, para terra firme e, como se estivesse no centro de um palco napolitano, abre o sorriso, acena para a multidão e para as clientes, as três mulheres europeias de meia-idade, que já se consumiam em gritinhos histéricos pela desgraça anunciada do seu guia.
-- Tutti bene... -- anunciava à plateia, onde uns soltavam um "uff" de alívio, enquanto outros exibiam um riso de escárnio que, ao mesmo tempo, parecia um lamento por o "mafioso" não ter mergulhado nas águas negras do porto.
As três mulheres tinham sido alvo de uma ardorosa disputa entre dois guias, durante a viagem, que por um fio não terminou em pancadaria. Um dos guias habituais, Mário, um bijagó nascido na tabanca de Bruce, a aldeia mais próxima da praia com o mesmo nome, passa a vida a vagabundear entre as ilhas e Bissau e foi o primeiro a contactar com elas no momento do embarque. Arranjou-lhes lugar, limpou os assentos dos pingos da chuva que tinha caído e preparava-se para as encaminhar para o Hotel dos Bijagós, a melhor unidade hoteleira da ilha.
-- Esse filho da puta desse mafioso... -- gritava, sem conseguir sufocar a raiva que lhe crescia na alma e na boca.
-- Calma! É preciso ter calma... senão perdes a razão! -- dizia-lhe, apaziguador, João Bacalhau, o empresário português que tem a concessão do Bijagós, em Bubaque, para quem Mário faz serviços ocasionais.
-- Mas eu corto-lhe a cabeça! E virava-se para o outro, insultando-o em crioulo, ao mesmo tempo que passava o dedo indicador pelo pescoço, numa atitude de verdadeira declaração de guerra. Alguns passageiros entreolhavam-se, outros riam com uma suavidade nervosa. Ninguém percebia o que tinha causado tamanha explosão de nervos.
O problema era complicado. A meio da viagem, um outro angariador de clientes, um dos muitos naturais da Guiné Conakri -- que na Guiné-Bissau têm fama de ladrões e bandoleiros --, desviou as três mulheres para um qualquer tugúrio.
Os dois narizes estiveram a muito pouco de tocar-se, mas a contenda ficou adiada para melhor altura. Um conflito incendiado por ódios antigos. Pelos vistos, era habitual o homem de Conakri roubar clientes a outros, já com a travessia a meio, tudo porque os 30 mil pesos (200 e tal escudos) que ganham por cliente faz diferença nos malabarismos das economias domésticas.
Ali mesmo ao lado, alguns passageiros não escondiam a preocupação pelo tom da exaltação, mas outros, sobretudo um grupo de jovens acabadinho de chegar de estudos feitos em Cuba, já deveriam ir na vigésima cerveja cada um e a custo abanavam o corpo. Tomavam conta de quase todo o convés, ao som dos merengues e da salsa cubanas que saía de um gravador estridente. O único que parecia resistir ao avanço do álcool era um negrão gigante, dono de um corpanzil que se aproximava dos dois metros de altura e de alguns 120 ou 130 quilos, distribuídos por umas pernas enormes, umas costas que pareciam uma armação de betão, umas banhas que já saltavam fora das calças, uns enormes olhos arregalados e uns beições do tamanho do pneu de motorizada.
De vez em quando, soltava um arroto compatível com o tamanho do seu estômago para cima de um dos pilotos do barco, integrado na equipa mas sem ordens de chegar ao leme, que também atropelava as palavras e se debruçava sobre umas bagagens com o torpor de quem já só conseguia dormir. O arroto era intervalado pelo refrão da canção das suas preferências, que terá rodado para cima de umas 30 vezes, e que era sobretudo um grito estridente, arrancado das profundezas das goelas de gigante: "Guantáannammooo, oh, oh, oh!" Um pavor capaz de rebentar com os tímpanos mais apetrechados.
Bemba di vida
Mas, depois de se estar na ilha em paz e sossego, depois de estendido o corpo por uns instantes, em lençóis lavados, e passada a cara por um fio de água, o encantamento é inevitável. Mesmo a confusão do porto, no dia seguinte, é olhada com olhos diferentes dos do primeiro dia. A garridice dos miúdos, que ostentam pequenos tubarões como troféus de caça, as vendedeiras que impingem fruta e peixe com gargalhadas e uma zombaria atrevida, os comerciantes libaneses e mauritanos das barracas que enxameiam a encosta da subida até ao centro de Bubaque, pouco fiéis ao sangue árabe que lhes corre nas veias -- dormem em cima da mercadoria em vez de a procurar vender --, são uma aguarela dos ritmos da vida local.
Na praia de Bruce, nos seus infindáveis quilómetros de areia, nas suas águas que navegam num oceano de serenidade, conquista-se então a solidão. E, ao fim da tarde, nas encostas de Bubaque, ouve-se uma das mais belas óperas alguma vez inspiradas pelos sortilégios da natureza.
Seria pretensioso dizer que o momento é único, mas exagero não será. A encosta esverdeada pela relva está salpicada de acácias que, ao longe, parecem umas pintas vermelhas, obra do acaso ou de um pintor enlouquecido pelo lento rumor da brisa mansa da tarde, por um sol preguiçoso que teima em não se ir embora, em deixar-se derreter numa incandescência gulosa afogada num rosa-vivo. O chilreio da brisa é uma ária acompanhada pelos acordes mansinhos da maré a morrer na praia das Escadinhas. Mas a surpresa é total quando o canto de uma ave irrompe pela fresca da tarde, um canto quase humano que parece vir das nuvens e nos faz arrepiar a espinha.
Os Bijagós são "bemba di vida", um celeiro de vida marinha, de fauna e flora. Reserva de biosfera no círculo das ilhas de Orango, Orangozinho, Canogo, Meneque, entre outras, o arquipélago é um mostruário de vida selvagem a entrar na perigosa rampa da pilhagem de recursos. Quando se ouve o belo canto dos milhares de rãs e sapos que despontam no escuro da selva depois de uma noite de tempestade -- com o dia a nascer por longos segundos no traço de um relâmpago em delírio --, os recantos do espírito estão longe de se ocupar com o pensamento das frotas pesqueiras que mourejam por aquelas costas. Uma faina vista de Bissau, por quem manda, com olhos apaziguados por uma choruda conta bancária. O negócio das licenças de pesca é uma porta escancarada para um exército de hordas indisciplinadas que arrasam os fundos daqueles mares com os mimos tecnológicos das terras civilizadas... Até os tubarões começam a emigrar para águas distantes. Estão na mira dos arpões em nome desse extraordinário mercado de uns quantos milhões de bocas japonesas que se riem de orelha a orelha por uma sopa de barbatanas de tubarão...
Contra a presente rapina tem lutado a Tiniguena, uma organização não governamental com vários projectos de educação ambiental em curso. Em Março de 1994, organizou uma viagem de uma semana às ilhas para um grupo de jovens estudantes de Bissau. Para que daqui por 15 anos não restem apenas recordações, escreveu o poeta de dotes nascentes Óscar Pitti Rivera, 15 anos, 9ª classe: «Vendo-te defronte assustei-me!/ Afinal a natureza persiste./ Esbelto era o dia/ Em que te encontrei/ Aii!!! Que susto deu-me/ Esta maravilha da natureza persistente!/ Vendo-o contínuo/ assustando-me/ Porque não posso crer que ainda exista.»
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