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<DOCNO>PUBLICO-19951209-003</DOCNO>
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<DATE>19951209</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>LMQ</AUTHOR>
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Mário Cláudio fala de «As Batalhas do Caia», incursão romanesca no universo queirosiano
O fantasma de Eça
Luís Miguel Queirós
Mário Cláudio inspirou-se num romance que Eça tencionou escrever -- e que trataria da invasão de Portugal por um país estrangeiro -- para urdir uma ficção em torno deste projecto nunca concretizado. Descrição ficcionada dos últimos anos de vida do romancista -- cujo 150º aniversário está agora a comemorar-se --, «As Batalhas do Caia» são também um livro de crítica violenta e mordaz à nossa classe política, passada e presente. E um ousado exercício de estilo, que implicou reinventar a escrita queirosiana.
Em 1877, quando se encontrava a exercer funções diplomáticas em Inglaterra, Eça de Queirós acalentou a ideia de escrever um romance que tivesse como tema a invasão de Portugal por uma potência estrangeira, presumivelmente a Espanha. Chegou mesmo a escrever um esboço da obra, mas nunca a concluiu. É destes factos reais que Mário Cláudio parte para conceber o seu último livro -- «As Batalhas do Caia» --, cujo lançamento terá lugar no próximo dia 12, na livraria lisboeta Barata, onde Maria Lúcia Lepecki falará da obra. O romance, editado pela Dom Quixote, contará ainda com um segundo lançamento no Porto, cabendo desta vez a respectiva apresentação a Isabel Pires de Lima.
«As Batalhas do Caia» intercalam a descrição romanceada dos derradeiros anos da vida do escritor com excertos, igualmente fictícios, do seu abortado projecto de romance. O resultado é um livro que permite diversas leituras e onde se adivinham algumas propositadas analogias com situações do presente. Analogias que também Eça, decerto, não deixaria de nos sugerir, se tivesse escrito o romance que não escreveu.
PÚBLICO -- «As Batalhas do Caia» partem de uma ideia temerária, já que implicaria sempre, de algum modo, recriar a escrita de Eça de Queirós, mesmo não havendo a intenção -- e parece óbvio que não a houve -- de escrever o romance que Eça apenas esboçou.
Mário Cláudio -- A ideia surgiu-me da leitura fortuita de um texto do Eça, «A Catástrofe», que é o esboço de um romance nunca levado a cabo e que, geralmente, aparece publicado como uma espécie de complemento a «O Conde de Abranhos». O título do romance, se ele o tivesse terminado, seria «A Batalha do Caia». O que eu procurei fazer foi a história do projecto de um romance, sabendo de antemão quais seriam as características desse romance.
P -- Mas é inevitável que os leitores aguardem um tom queirosiano nas páginas que se apresentam como fragmentos desse projecto de romance. Um exercício técnico, chamemos-lhe assim, que se complica ainda mais quando se trata -- e recordo-me aqui da carta que o cabo Luís de Sousa envia à mãe -- de escrever como o Eça acharia que escreve um jovem soldado.
R -- Pois, há vários planos psicológicos da narração, ou da criatividade da narração -- admito que isso foi absolutamente intencional. Houve um risco, todavia, a que procurei furtar-me ao longo de todo o romance: o de tentar criar um «pastiche». Se o tivesse feito, teria resultado inautêntico; o estilo do Eça pode-se imitar mas não se pode reproduzir como um «fac-simile». Por outro lado, isso daria um tom caricatural ao livro, que não me interessava. O que não quer dizer que não tenha uma intenção parodística: é uma metáfora de muita coisa que aconteceu, e que está a acontecer, em Portugal. Mas o que aqui sobra é o fantasma do Eça; e o que sobra do estilo do Eça é o fantasma do estilo do Eça.
P -- Uma nota no final do livro avisa-nos de que algumas passagens são transcrições, quer do conto «A Catástrofe» quer de cartas do Eça, ou a ele dirigidas. Sabemos que o resto é ficção, mas ao longo do livro vamo-nos perguntando se este ou aquele detalhe é biograficamente documentado, ou pura invenção sua.
P -- Para além das transcrições referidas, não há mais nada do Eça; e os dados biográficos que utilizo funcionam apenas como um enquadramento de que me servi para escrever uma obra de ficção. Não é a biografia de um projecto do Eça, é a autobiografia fictícia desse projecto; nem sequer tenho a certeza de que esta ideia o tenha acompanhado ao longo da vida, desde 1877, quando ela lhe surgiu, até à sua morte.
P -- Pôs no plural o título que Eça tinha previsto para o seu romance, o que parece reforçar a insinuação de que as páginas que vamos ler se podem referir a diferentes batalhas, travadas em diversos planos, e algumas delas porventura ainda em curso...
R -- Sim, a invasão de que se fala é, também, uma invasão que estamos a sofrer neste momento. Não posso negar que isso esteve presente no meu espírito quando decidi avançar com a ideia, já muito antiga, de escrever este livro.
P -- No seu romance dentro do romance, Policarpo -- a personagem do seu personagem -- descreve uma revolta espontânea que derruba o invasor, mas mostra-nos, depois, como as coisas não tardam a voltar ao mesmo, ainda que o poder tenha mudado de cara. É apenas um exemplo, este, das muitas vergastadas que, por interposta voz, aplica à classe política portuguesa.
R -- Gostei de apontar o dedo àquilo que tem sido historicamente o assassínio sistemático do imaginário colectivo português, perpetrado justamente pelo poder político. Portugal tem sido o exemplo europeu mais acabado do desprezo pela história, pela tradição, pelo registo do passado, pela mística de um país. Não se trata aqui de qualquer nacionalismo, mas de denunciar o esquecimento a que se vota essa dimensão do fantástico, do imaginário, que se cruza com a dimensão individual de cada um e que é a do país a que se pertence, onde se nasceu e se vive. Essa espécie de patologia, esse sistemático desprezo por aquilo que se é, dura pelo menos desde a Restauração. E não há geração em que não apareçam quatro ou cinco escritores a verberar esse facto, a condená-lo, mostrando que estamos constantemente a suicidar-nos, a poluir e a esquecer aquilo que somos. Mas o assassínio prossegue.
P -- Algumas das mais violentas ironias deste livro, dirige-as à dinastia de Bragança.
R -- Sim, em especial as suas últimas figuras; eles próprios viam Portugal como uma piolheira. Era esta a expressão utilizada por D. Carlos quando regressava do estrangeiro: «Voltar à piolheira». O assassínio do imaginário português a que me referi partia do próprio monarca, que embora pintasse paisagens portuguesas e caçasse peças cinegéticas nacionais, estava-se marimbando para a vida política nacional e para aquilo que nós éramos como país.
P -- Mas se os políticos são fustigados, incluindo os da oposição, já algumas figuras de extracto popular assumem dimensões quase épicas; lembro-me, por exemplo, da prostituta patriota Mariquinhas Vaidosa.
R -- Isso a que chama épica é uma epopeia sem figuras paradigmáticas, como Vasco da Gama ou Mouzinho de Albuquerque. É uma epopeia da imaginação, daquilo que nós somos, e essa nunca foi lembrada, nem respeitada por quem está à frente dos órgãos de poder. Não sei porquê, não consigo atinar com o motivo. Estivemos muito tempo de cócoras diante dos franceses, estamos de rastos em relação à Espanha, e agora parece ser a altura de estarmos de cócoras em relação à Europa em globo.
P -- O Eça que descreve é um homem inquieto por se sentir doente, porventura pressentindo que vai morrer em breve; e esse homem vai, ao mesmo tempo, escrevendo um romance, que afinal nunca escreve. Este ambiente de hesitações, em que nada adquire perfeita nitidez, parece contaminar o seu próprio livro, como se tivesse evitado mostrar intenções demasiado óbvias, e preferisse deixar no ar todas as leituras possíveis...
R -- O que eu pretendi foi que o texto ficasse a pairar como uma espécie de nuvem, que nunca se consolidasse numa paisagem. A questão da doença e da morte é muito importante neste livro, que aliás abre com uma citação do próprio Eça onde este diz: «Tudo tende à ruína num país de ruínas». Hoje supõe-se, embora sem provas conclusivas, que ele teria morrido de paramiloidose [vulgo «doença dos pézinhos»], doença cujo centro é, como se sabe, a Póvoa do Varzim. Não é por acaso que dediquei o livro a Corino de Andrade, o cientista que isolou o vírus da paramiloidose. Vi-me obrigado a esticar o tempo da doença e da morte, para mostrar que não era apenas um país que estava a ser invadido, era também um homem; que não era apenas o país que tendia à ruína, era também o homem -- que nesse momento significava aquele país -- que tendia à ruína. Se o consegui, não sei.
P -- Dada a imagem que temos de um Eça racionalista, positivo, irónico, surpreende um pouco, neste romance, a acumulação de sinais que apontam para uma dimensão transcendente, ou mística: as referências ao graal, à «kundâlini» [serpente simbólica da tradição oriental], ao sebastianismo...
R -- Há mais, há mesmo episódios das vidas dos santos; refiro-me às vidas dos santos do próprio Eça, às que ele escolheu [os textos nos quais o romancista aborda as vidas de S. Cristóvão, Santo Onofre e S. Frei Gil estão recolhidos no volume póstumo «Últimas Páginas»]. Não é líquido que o Eça fosse um ateu; ser ateu, na época, era uma questão de cidadania, uma condição indispensável para que se pudesse ser um artista criativo, um intelectual sério. Acredito que ele tivesse um certo encantamento por aquilo a que podemos chamar o maravilhoso; e tenho a certeza -- através da escrita das vidas dos santos e de outros textos -- de que frequentou esse plano na sua imaginação. Em «A Relíquia», por exemplo, um livro anti-clerical, descobrimos dimensões de um misticismo profundo, com raízes longínquas e que entroncam em mitos e crenças muito anteriores ao cristianismo. Acho que o Eça era, de facto, uma personalidade com um grande tempero do elemento espiritual.
P -- De um ponto de vista formal, os seus leitores habituais hão-de notar, neste livro, alguma diferença de escrita, que aqui diríamos mais fluida.
R -- Isso corresponde à libertação, em termos estilísticos, de uma pontuação -- e sobretudo da vírgula -- que se estava a tornar demasiado densa. Mas essa obsessão não desaparece de forma arbitrária. Todo o texto é construído de acordo com um padrão, um ritmo, que foi pensado propositadamente para este livro.
P -- Em muitos passos, surge também uma escrita quase poética, imagens demasiado fortes para a prosa...
R -- Fico muito satisfeito que o diga, porque defendo a ideia de que a melhor poesia portuguesa está no romance. Acho que o nosso melhor poeta é a Agustina e que o maior prosador português é indiscutivelmente o Herberto Helder. Essa coisa dos géneros já foi ao ar há muito tempo. E já agora, dou-lhe a notícia de que publicarei, em breve, um novo livro de poesia, que se chamará «Dois Equinócios»; só espero que ele seja bastante prosa.
P -- Regressando a este romance, é inevitável associar a sua publicação às comemorações em curso dos 150 anos do nascimento de Eça de Queirós.
R -- Não houve qualquer projecto nesse sentido. Aconteceu coincidir. Acho que é uma espécie de sinal que o Eça me está a fazer do além, no sentido de dar um aval benevolente a este livro.
Título: As Batalhas do Caia
Autor: Mário Cláudio
Editora: D. Quixote
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