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<DOCNO>PUBLICO-19951211-037</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19951211-037</DOCID>
<DATE>19951211</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
<AUTHOR>JH</AUTHOR>
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Luta pela autonomia de Casamansa
A guerra vista do lado guineense
Eduardo Dâmaso, em S. Domingos (Guiné-Bissau)
O conflito arrasta-se há 12 anos e não se vislumbram soluções duradouras. Aos chefes da guerrilha de Casamansa presos sucederam lideranças mais radicais. Na fronteira da Guiné-Bissau com o Senegal, teme-se o alastramento da guerra.
Os dois homens irrompem pela aldeia de catanas na mão, em grande alarido e aos berros. Pelo disparar da máquina fotográfica logo percebem que os desconhecidos são jornalistas e desatam a conversar quase aos gritos, num incompreensível crioulo francês. Um tradutor, guineense e membro da ADDRA, a organização não governamental contratada para apoiar os mais de 17 mil refugiados que se acantonam ao correr de toda a fronteira norte e leste da Guiné-Bissau com o Senegal, vai desfiando a história dos dois homens aos nossos olhos. Estiveram presos em 1994 no Senegal, acusados de pertencerem à guerrilha independentista que luta pela separação da região de Casamansa do território senegalês, conseguiram fugir da prisão, onde terão sido torturados, e refugiaram-se nas florestas do Sul até se juntarem aos guerrilheiros do Movimento das Forças Democráticas de Casamansa (MFDC).
«Nós somos guerrilheiros... nós somos guerrilheiros!» Os dois homens repetem, já em francês tosco, a revelação da sua condição, de homens de armas na mão. Chegados à Guiné-Bissau em Julho passado, tentam agora encontrar um pedaço de terra onde possam fixar a família em segurança, onde as mulheres e as crianças possam viver da agricultura. Eles, pela sua parte, tencionam regressar à floresta. À impenetrável floresta de Oussouye e de Bissine, onde tudo se joga.
Uma herança da colonização
Esta é a guerra que há 12 anos quase só mata populações indefesas e, aparentemente, turistas descuidados, como foi o caso dos dois casais de cidadãos franceses que desapareceram misteriosamente em 6 de Abril deste ano. E só com este episódio dos casais franceses desaparecidos o mundo despertou de novo para esta guerra esquecida numa ponta da África Ocidental, onde os djolas, no Senegal, e os felupes, na Guiné-Bissau, estão contra as outras etnias da área fronteiriça.
Passados seis meses sobre o desaparecimento dos quatro franceses, já ninguém acredita que ainda estejam vivos e as especulações correm de boca em boca. Que eram dos serviços secretos franceses, que eram traficantes de armas, que as mulheres foram violadas por dezenas de guerrilheiros e todos eliminados para que não pudessem contar...
Histórias e mais histórias, afinal, apenas mais um mistério para juntar aos que já enfeitam esta guerra que é um rastilho deixado pela colonização francesa e que há 12 anos mantém o Sul do Senegal em sobressalto e dois países vizinhos desconfiados um do outro, apesar das cíclicas profissões de fé e confiança que os presidentes Abdou Diouf e Nino Vieira trocam mutuamente, para além de 17 mil pessoas deslocadas das suas terras.
Subsistem ainda as versões mais lógicas relacionadas com a exploração dos recursos petrolíferos e piscatórios de Casamansa, e das inevitáveis manobras políticas que lhe estão associadas. Não falta quem defenda a tese de que, basicamente, a guerrilha do MFDC é um movimento sustentado quanto baste por Nino Vieira para incomodar o seu vizinho Abdou Diouf e, assim, obrigá-lo a partilhar os recursos da região. Tudo conjecturas que nascem da relação de chantagem política que os dois países vão mantendo entre si mas que nada dizem aos refugiados deste conflito.
No campo de Soncutoto, que fica a poucos quilómetros de S. Domingos -- última povoação guineense antes da fronteira com o Senegal e a menos de 50 quilómetros de Ziguinchor, capital de Casamansa --, vivem uns 400 refugiados que já têm por sua conta uns alqueires de terra para cultivar, casas de adobe e telhado de colmo, e rudimentares infra-estruturas de fornecimento de água e higiene construídas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Soncutoto é um acampamento «modelo» e é aí que os dois «guerrilheiros» que irromperam do mato de catana em punho acabam por se envolver em discussão com o tradutor guineense, exactamente por, no auge do arrebatamento, se terem declarado membros da guerrilha.
O tradutor olha de soslaio para o seu chefe, Solofo Ramorasata -- um técnico natural da ilha de Madagáscar transferido dos campos de refugiados do Ruanda para a Guiné-Bissau --, como que a pedir instruções mas não esperou por elas. De «motu proprio», lembra aos dois homens que se, na verdade, são guerrilheiros, então não se podem considerar refugiados, não receberão apoio alimentar e terão de entregar-se às autoridades guineenses. Os dois homens entreolham-se, trocam algumas palavras rápidas e passam logo a simples simpatizantes para acabarem só como habitantes da região de Mpak, onde o exército senegalês tem uma base, a quem queimaram as casas e obrigaram a fugir para a Guiné-Bissau. Limitam-se a responsabilizar o Governo senegalês pela sua miséria, a dizer que os rebeldes lutam por uma causa justa.
Os campos de refugiados estendem-se entre os sectores de Varela e S. Domingos e prolongam-se pelas picadas fronteiriças do Leste, já depois de Ingoré. Em Mbaian, Beguingue, Campada, Djaquemundo, Culadge, campos que distam cerca de 120 quilómetros de Bissau, os rebeldes do MFDC misturam-se com os refugiados e fazem destes acampamentos bases seguras para as suas infiltrações nocturnas no Senegal. Beneficiam ainda da similitude física e cultural que existe entre as etnias djola (Senegal) e felupes (Guiné-Bissau) -- um facto que, depois de muitas pressões do governo de Abdou Diouf, obrigou o Executivo guineense a transferir milhares de refugiados mais para o interior do país, como confirma o presidente do «comité de estado» (vereação) de S. Domingos, Pedro Silva Cunha.
O perigo do alastramento
Não falta, porém, na Guiné-Bissau, quem receie um alastramento do conflito para o interior. Como nota o jornalista Fernando Pereira, director do «Banobero», o único jornal privado de Bissau, «o irredentismo dos djolas coloca sérios embaraços ao Governo guineense face ao vizinho senegalês; mas também há quem receie que as afinidades étnico-culturais entre eles e os felupes levem o MFDC a reivindicar os territórios da Guiné-Bissau delimitados pelo Rio Cacheu». E esse poderá ser um cenário de catástrofe total na região.
O régulo de Caroai, Hei Sumbucan Abdu Djata, é a maior autoridade religiosa dos felupes, sendo-lhe prestada vassalagem para lá das fronteiras guineenses, ou seja, mesmo entre os djolas. Talvez por isso tem sido frequentemente acusado de alimentar os rebeldes e de lhes dar protecção mágica, residindo aí, para as populações da linha de fronteira, o poder dos guerrilheiros.
Abdu Djata, que é deputado pelo PAIGC na Assembleia Nacional Popular, recusa tais acusações exactamente com o argumento da sua condição política e pela alegada desconfiança que ela gera no MFDC. Mas não deixa, subtilmente, de remeter o seu distanciamento e, até, ignorância, para o universo do segredo e do mistério -- a marca verdadeiramente indelével deste conflito. «O que se passa no mato de Casamansa é segredo! Como posso eu saber alguma coisa?» Não desdenharia, porém, ser mediador de uma solução pacífica desde que as negociações tivessem lugar na Guiné-Bissau.
Radicalização
Todavia, para lá dos confins e do negrume da floresta, nada se sabe -- ao contrário do que aconteceu até 1993, altura em que foi possível negociar um cessar-fogo à mesa de quatro dirigentes do MFDC considerados «credíveis», quer pelos senegaleses quer pela Guiné-Bissau e pelos observadores diplomáticos acreditados em Dakar, sobretudo franceses. Edmond Borá, Sanu Bodian, Mamadou Diémé e Sarani Badiane, ora detidos nas prisões senegalesas ou em prisão domiciliária, são os quatro dirigentes que negociaram o cessar fogo e que aceitaram a mediação da controversa figura do abade Diamagoune Senghor, da paróquia de Nema, em Ziguinchor.
Ficou assente na altura, mediante a apresentação de provas pela França, de que a região de Casamansa não teve, historicamente, nenhum estatuto particular de autonomia durante os tempos da colonização. O testemunho francês foi apresentado em Dezembro de 1993, a pedido do abade Diamagoune Senghor, e logo se pensou que as armas se calariam em Casamansa, pois, na cerimónia, estavam presentes os dirigentes mais importantes da chamada ala política do MFDC.
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