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<DOCNO>PUBLICO-19951224-083</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19951224-083</DOCID>
<DATE>19951224</DATE>
<CATEGORY>Sociedade</CATEGORY>
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Incêndio mata na Índia
Pelo menos 309 pessoas, muitas das quais crianças, morreram num incêndio que deflagrou numa escola de Dabwali, no Norte da Índia. Segundo a agência United News, as chamas irromperam no início da tarde na sala, com apenas uma saída, onde mais de mil alunos de uma escola primária e seus pais participavam na respectiva festa anual. As causas do sinistro não estão ainda apuradas, mas, segundo a agência indiana Press Trust, o fogo poderá ter sido provocado pela explosão de uma garrafa de gás. Um responsável local afirmou, contudo, que ele se deveu a um curto-circuito. O recinto de festas, a céu aberto, fora coberto com uma tenda, que pegou fogo e se abateu sobre as pessoas. Centenas de feridos com queimaduras graves foram transportados para os hospitais de Dabwali e Sistra, a 60 quilómetros de distância.
Afastada hipótese de atentado na Colômbia
O ministro colombiano dos Negócios Estrangeiros, Rodrigo Pardo, afastou a hipótese de atentado no acidente registado na quarta-feira com um Boeing 757 de uma companhia aérea norte-americana, do qual resultaram 76 mortos. «Não há qualquer indício, até agora, de que o voo 965 da American Airlines tenha sido alvo de um atentado terrorista», afirmou ele, confirmando que o aparelho se afastou várias milhas da rota prevista antes de embater no Cerro San Jose, um monte da cordilheira colombiana, a 50 quilómetros a norte de Cali. Os primeiros dados do inquérito, confirmados pelo director da aviação civil colombiana, Álvaro Cala, indicam que antes do acidente o avião, que transportava 164 passageiros a bordo, se desviou «cerca de 13 milhas para a esquerda» do corredor habitual de descida em direcção a Cali. Apenas o exame da caixa negra do aparelho permitirá, contudo, esclarecer as causas da catástrofe.
Ministro suspende Cidadão e Justiça
O ministro da Justiça, Vera Jardim, decidiu suspender o Programa Cidadão e Justiça, criado por Laborinho Lúcio. Ele argumenta que este programa «nunca teve lei orgânica própria e as suas actividades sempre se desenvolveram no âmbito do gabinete» do ex-titular da pasta, «despendendo verbas da ordem dos 50 mil contos anuais, sobretudo com pessoal». Com o mesmo investimento, diz Vera Jardim, pode-se «obter melhores resultados, com a colaboração de entidades da sociedade civil, especialmente as que estão mais empenhadas e envolvidas em tais questões». Nesse sentido, estarão já a ser desenvolvidos esforços para reiniciar, em novos moldes, e o mais rapidamente possível, as actividades do programa.
Condutor francês libertado
Foi posto em liberdade o francês que conduzia embriagado um camião que chocou, na quinta-feira, contra uma carrinha, causando a morte de oito portugueses e ferimentos em outros quatro. O indivíduo, que permanece hospitalizado com lesões graves, foi detido depois de ter dado resultado positivo o teste de alcoolemia a que foi submetido após o acidente, na província basca de Alava. E na sexta-feira foi libertado, na sequência das diligências que o juiz considerou necessárias. x01 4752
De Mostar a Sarajevo
A travessia do Monte Igman
José Manuel Fernandes, em Sarajevo
Cento e trinta e três quilómetros, sete horas e meia. A viagem entre Mostar e Sarajevo, numa carreira regular de transportes públicos bósnios, é uma viagem através da guerra -- ou dos restos da guerra. E o tempo que demora uma consequência dessa mesma guerra e das divisões que estabeleceu no país.
Logo em Mostar, a camioneta enche e, mal se sai da cidade, entram mais passageiros para viajarem de pé, arrumando-se como podem entre os muitos sacos que juncam o corredor. Depois, mal se deixa o casario, na lezíria que rodeia Mostar, segue-se entre ruínas. Não há uma casa que não apresenta sinais de luta, impactos de bala e estilhaços, crateras abertas por granadas. Tudo no meio de uma paisagem triste, cinzenta, enlameada. Mas onde surgem, aqui e além, sinais de vida: roupa estendida, uma janela com cortinas, a presença de uma parabólica.
Mais uns quilómetros e entra-se nas gargantas apertadas do Neretva, onde se alinham algumas das mais produtivas barragens hidroeléctricas do país, permanente objecto de disputa. As pontes da estrada foram deitadas abaixo, pelo que somos obrigados a constantes e morosos desvios em caminhos esburacados que bordejam as águas represadas do Neretva, de um verde profundo, esmeralda. A neve começa a cobrir os montes e apercebemo-nos, por entre o nevoeiro, da grandiosidade do cenário, feito de montes e gargantas, desfiladeiros apertados em que a estrada se empoleira e que, a espaços, se abrem para deixar assentar um pouco de terra arável, sustentada em socalcos, e as casas de camponeses que, aqui, parecem ter escapado à guerra. Não fossem as constantes entradas e saídas de soldados, muitos deles armados, não fossem tão raros os homens não fardados, e quase esqueceríamos estarmos na Bósnia, a caminho de Sarajevo.
Em Jablanica, a meio caminho, a chegada da camioneta quase provoca um pequeno motim. Havia dezenas de pessoas à espera e lugar para duas ou três apenas. Alguns soldados conseguem forçar a passagem, deixando para trás velhos que chegam a agarrar-se, em desespero, às portas, procurando evitar que estas fechem.
Depois, a estrada deixa o vale do Neretva, empina-se montanha acima, seguindo entre campos cobertos de neve e ultrapassando sucessivos postos de controlo das Nações Unidas. Sentimos que nos aproximamos de Sarajevo. De repente, paramos junto a um controlo bósnio e, contra toda a lógica, deixamos a estrada principal para entrar numa estrada de montanha, em direcção ao Monte Igman. O caminho é extremamente difícil, cheio de lama e neve, bordejado por precipícios, enquadrado por enormes abetos e exige ao condutor milagres de equilíbrio. Por vezes, para deixar passar outros veículos, é necessário percorrer centenas de metros em marcha atrás, à beira de abismos. Raramente surgem aldeias -- mas as que vemos estão arrasadas, as mesquitas incendiadas, grande parte das casas derrubadas.
Formalmente, deveríamos estar numa zona sob exclusivo controlo das Nações Unidas, que, em Agosto de 1994, obrigaram os sérvios a retirar. Mas é só formalmente: o exército bósnio ocupou o vazio assim criado e estabeleceu posições no Monte Igman, actualmente o único canal de passagem que liga Sarajevo ao resto da Bósnia sob controlo muçulmano. E que é a única estrada utilizável por muçulmanos para saírem da cidade sitiada.
A travessia da montanha que, em 1984, abrigou algumas das modalidades olímpicas implica apenas 27 quilómetros, mas demoramos quase três horas até iniciar a descida para o vale de Sarajevo, a cidade ainda escondida pelas nuvens baixas que embrulham os baixios num manto branco e leve, quase idílico -- e irreal.
Mas, para chegarmos ao nosso destino, ainda faltava passar pelo posto de controlo do aeroporto -- e aí teríamos de esperar mais de hora e meia por passagem. É que o local é controlado pelos militares franceses e constitui uma espécie de cruzamento: a certas horas, passam os muçulmanos, noutras, intercaladas, é a vez dos sérvios. Os soldados franceses guiam as colunas, velando para que não ocorram misturas perigosas.
E é assim que chegamos à cidade sitiada, quando o sol já baixava sobre o horizonte e os seus habitantes se apinhavam nas paragens do «trolley», ao longo da «avenida dos franco-atiradores», na ilusão de que a guerra acabou. Uma ilusão: sensivelmente à mesma hora que entrávamos na cidade, um daqueles mesmos «trolleys» era alvejado por um franco-atirador. Houve apenas um ferido -- mas a vítima, uma rapariga, ficou cega. Era muçulmana e chegara na véspera a Sarajevo, vinda de território sérvio, onde sobrevivera acolhida por amigos. Regressara porque tinha saudades da cidade que já não via há quatro anos e que, julgava, vivia já totalmente em paz. x01cx01 28277
A cidade ferida
José Manuel Fernandes, em Sarajevo
1. Ainda há medo em Sarajevo
O «trolley», depois de contornar a cidade velha, passa pelo Palácio da Presidência bósnia, em direcção à grande avenida da cidade, em tempos chamada Marechal Tito, hoje conhecida pela «avenida dos atiradores furtivos». Na esquina de um edifício, antes de um enfiamento dominado pela colinas a oeste, um cartaz: «Pazi snajper» -- «Cuidado com os atiradores furtivos». Na rua, todos seguem indiferentes, como se esse cartaz lá não estivesse. Mas, no banco à nossa frente, dentro do «trolley», uma mãe vira-se de costas para a janela, como se quisesse servir de escudo ao filho que viaja no banco ao lado.
É, provavelmente, um gesto automático, nervoso, traído no seu significado pela mão que afaga a cabeça loura do miúdo e pelo olhar preocupado. E é um gesto quase desnecessário: afinal, desde Setembro que reina o cessar-fogo na cidade, desde 19 de Outubro que os «trolleys» voltaram a circular, devolvendo a Sarajevo um dos símbolos mais evidentes de normalidade.
Naquele momento, porém, tem-se a noção clara de como o medo se entranhou nos espíritos ao longo de três anos e meio de cerco, passou a fazer parte do dia-a-dia e permanece, marcando atitudes como a daquela mãe. Agora, que o cerco foi aliviado, que a NATO substituiu as Nações Unidas, Sarajevo já vive em paz.
Mas viverá mesmo?
Não há como deixar a noite cair -- o que sucede muito cedo, pouco depois das quatro da tarde -- para compreender que a anormalidade permanece. É como se a falta de luz revelasse o que o dia esconde -- sobretudo, a precaridade dos recursos. Quase não há iluminação pública e, onde há, falha com frequência. Raros estabelecimentos permanecem abertos, partes inteiras das cidade ficam mergulhadas na escuridão quase total, apenas rompida pela claridade rala e tremeluzente das velas, que se adivinham por detrás das telas de plástico translúcido, fornecidas pela ajuda humanitária e que ainda ocupam o lugar de quase todas as vidraças. As ruas ficam rapidamente desertas, os «trolleys» viajam quase vazios, os cafés esvaziam-se e, com frequência, um nevoeiro ralo e muito frio ajuda a tornar tudo ainda mais triste e deprimente. Até a neve que se acumula nos passeios parece agora mais suja e enegrecida, incapaz de, com a sua brancura, criar uma ilusão de beleza ou serenidade.
É certo que a noite esconde também as feridas da guerra -- as marcas dos obuses, os traços dos estilhaços, as ruínas de alguns edifícios emblemáticos -- mas a verdade é que, apesar de tudo, não são as ruínas físicas que marcam a cidade. São as dificuldades do dia-a-dia que permanecem.
2. Voltar a viver depois de sobreviver
No chão, junto à parede do mercado, vários ramos de flores. Em frente, no alcatrão da rua, os traços do impacto de um obus. Mais nada. Nem sequer uma placa, talvez porque não houvesse razão especial para assinalar com uma placa 35 dos cerca de onze mil mortos de Sarajevo.
Foi no passado mês de Agosto -- e o segundo massacre do mercado acabaria por fazer precipitar a solução do conflito. Três anos antes, a uns 50 metros de distância, no mercado ao ar livre, junto a uma padaria, o rebentamento de duas granadas havia desencadeado as primeiras sanções internacionais contra a Jugoslávia de Milosevic. Foi o massacre de Vase Miskina, o nome desta rua comercial da parte antiga de Sarajevo, uma rua que agora voltou a registar grande parte do movimento de outros tempos.
Nestes últimos dias antes do Natal, as pessoas encheram os mercados, apesar de serem raros os sinais da época festiva (afinal, em Sarajevo, os muçulmanos são maioritários e só os croatas, que eram a terceira comunidade da cidade, são católicos e festejam o nascimento de Cristo). É difícil descobrir pinheiros à venda e mais fácil encontrar quem ofereça as tradicionais luzes de Natal. As lojas não estão engalanadas, a oferta de brinquedos é escassa e o único Pai Natal veio da Islândia em acção de promoção.
Notam-se, sim, os sinais da penúria. Em redor dos mercados, pululam pequenas bancas improvisadas onde se tenta vender de tudo para fazer algum dinheiro. Há livros e discos antigos, peças de roupa, pilhas, fechaduras, objectos pessoais que só a necessidade obriga a oferecer a quem passa. E são também mulheres que tentam vender tabaco estrangeiro, chocolates, rapazes que se passeiam com maços de notas de dinares (a moeda local) à procura de divisas, sem aparente sucesso, porque aqui tudo se vende e tudo se compra em marcos.
Nas lojas, mistura-se tudo. Podem vender-se sapatos e cosméticos, roupa e produtos de mercearia, canetas e legumes, tudo lado a lado. A carne, os ovos e a manteiga são oferecidos mais baratos que em Portugal. Mas a fruta e os legumes são mais caros. Todas as pessoas se aviam de quantidades pequenas, muito pequenas -- em Sarajevo, o salário de um médico do hospital varia entre 50 e 70 marcos por mês, e essa é uma das profissões mais bem pagas. Ganha-se tanto quanto custam os sapatos mais baratos ou cinco quilos de carne. Como sobrevive esta gente?
«50 marcos até não é mau», responde Memhet Halilovic, chefe de redacção do «Oslobodenje», o diário que conseguiu resistir ao longo de toda a guerra, nunca deixando de sair. «Há alguns meses, a maior parte das pessoas nem salário recebia. Vivia-se como se podia: de poupanças, de dinheiro enviado por familiares emigrados (o Banco de Sarajevo nunca deixou de funcionar), do produto de alguma coisa que se vendia. Mas muitos só sobreviveram devido à ajuda humanitária. Para muita gente, era só isso que tinha para comer.»
Agora, Sarajevo rompeu o cerco, se se pode considerar que a infernal estrada de montanha do Monte Igman, que exige três horas para se percorrer uma trintena de quilómetros, é uma verdadeira ligação ao mundo exterior. Mas, pelo menos, já não se depende em exclusivo do mercado negro.
A água também voltou a correr nas torneiras (mas não todos os dias, mas não em todos os bairros da cidade) e o gás voltou a ser distribuído (com interrupções), pelo que já é raro encontrar pessoas nas ruas empurrando carrinhos de mão com lenha ou com recipientes de água. E esse é outro dos sinais de normalidade numa cidade onde a chegada deste Inverno não é temida como em 1993 ou 94, quando não havia forma de aquecer as casas, não havia comida, e os obuses nunca deixaram verdadeiramente de cair.
Por isso, quando, no jardim entre a velha sinagoga e a Ponte Princip -- o local onde foi assassinado o arquiduque Franz Ferdinand pelo nacionalista sérvio Gavrilo Princip, o atentado que esteve na origem da Primeira Guerra Mundial --, se vê um grupo de crianças a correr e a brincar, as mochilas às costas, rindo com as peripécias de uma batalha de bolas de neve, é como se este outro sinal de normalidade fosse também o sinal de que já existe uma vida depois da guerra.
3. Destruição selectiva
Se há símbolo da destruição de Sarajevo, esse símbolo é a biblioteca. Localizada no ângulo norte da cidade velha, limitando o quarteirão muçulmano tradicional, o Bascarsija, junto ao Miljacka -- cujas águas, engrossadas pelas neves, correm abundantes e carregadas de sedimentos que lhe dão uma perturbante tonalidade sanguinolenta --, a antiga biblioteca de Sarajevo, fundada no século XVI, possuía 4500 manuscritos da época turca. O edifício que a albergava, de traça mourisca, era elegante sem ser imponente. Hoje é uma ruína em que se penetra respeitando um silêncio pesado. Símbolo da cultura muçulmana, a biblioteca foi uma das primeiras vítimas das granadas sérvias. Dela nada resta, para além de paredes calcinadas, de pedras a que o calor das chamas roubou as formas.
No entanto, todos os edifícios em redor estão intactos -- ou quase. Só os vidros terão voado em estilhaços. As mesquitas que enxameiam as encostas que, nesse local, se juntam para apertar o vale do Miljacka, sobreviveram com poucos danos. O mesmo se passa com as lojas das ruas estreitas e bem muçulmanas do Bascarsija. Nesse local, melhor do que em nenhum outro, temos noção da estranha guerra de que esta cidade foi palco. Uma guerra sem lógica aparente.
Ao longo da cidade, é evidente que são muitos os sinais de destruição. Os principais edifícios públicos foram atingidos, uns pelo seu valor estratégico -- o aeroporto, o edifício dos correios, o centro de telecomunicações --, outros pelo seu valor simbólico -- a referida biblioteca, as orgulhosas torres gémeas, junto ao Holliday Inn, o edifício que um dia albergou o Parlamento, a torre do grande diário da cidade, o «Oslobodenje». Mas os sinais de destruição nos edifícios de habitação são menos evidentes, muito menos evidentes do que em Mostar, por exemplo. E, sobretudo, as mesquitas, a sinagoga, a catedral católica, as igrejas ortodoxas sobreviveram, quase intocadas.
É certo que esta cidade não foi bombardeada -- mas também é certo que o poder de fogo instalado pelos sérvios bósnios nas colinas que dominam o casario era impressionante (cerca de 400 armas pesadas). Como explicar, então, que a cidade não esteja arrasada, como podia estar ao fim de um cerco de mais de três anos? Que estranha guerra houve aqui?
Foi uma longa, uma esgotante guerra de nervos, mais do que uma guerra de posições ou uma guerra de conquista -- uma guerra quase medieval na viragem para o século XXI.
Em Abril de 1992, quando tudo começou, a superioridade militar sérvia era imensa. O exército federal ainda estava na cidade e poderia impor a sua vontade. A 2 de Maio, chegou a ter como refém o Presidente bósnio, Alija Izetbegovic. Nessa altura, muitos pensaram que a liderança bósnia se vergaria e que o país permaneceria numa federação jugoslava dominada pelos sérvios. Isso não aconteceu -- e a verdade é que os sérvios da Bósnia também não quiseram dar o passo seguinte: tomar a cidade. Talvez o pudessem ter feito, mas à custa de pesadas baixas e do imediato opróbio internacional.
Seguiu-se a guerra suja, a guerra dos «snippers», os atiradores furtivos -- uma guerra sem objectivo militar evidente, para além de desgastar e desmoralizar o adversário. Protagonizaram-na sobretudo os sérvios, que, instalados nas torres de bairros quase centrais como Grbavica ou nas colinas da periferia, faziam «tiro ao homem», principalmente ao longo do troço final da Avenida Marechal Tito, junto ao Holliday Inn. Mas protagonizaram-na igualmente as tropas governamentais, que massacraram bairros sob controlo sérvio, como Ilidza, junto ao aeroporto, e a referida Grbavica.
Foi uma guerra quase medieval, com recurso a um cerco impiedoso e à flagelação, tentando vergar pela fome e pela exaustão os sitiados. Os traços desse cerco ainda marcam o dia-a-dia da cidade.
4. Sob o fogo dos «snipper»
Há três dias que Fliad Brcic nunca esquecerá. São os dias 13, 14 e 15 de Maio de 1992. Habitante do mais periférico dos bairros da cidade, Dobrinja, paredes meias com o aeroporto, este engenheiro hoje com 47 anos recorda que esse foi o dia em que os sérvios avançaram e chegaram a tomar uma parte desta quase cidade erguida para os Jogos Olímpicos de 1984 e onde se viveram dos momentos mais dramáticos do cerco de três anos.
«Antes da guerra, viviam aqui umas 60 mil pessoas, isto era uma pequena cidade», relembra, falando ao PÚBLICO à luz de uma vela. «Mas este era o primeiro bairro da cidade, aquele que teria de ser primeiro conquistado a partir das posições que os sérvios ocuparam em redor. Por isso, desde os primeiros dias que começámos a ser flagelados.»
Nos primeiros sete dias de guerra, toda a família Brcic ficou bloqueada dentro do seu apartamento. Era impossível sair à rua sem ser alvejado a partir das posições ocupadas pelos atiradores sérvios. A queda de granadas era constante, as ligações com o coração da cidade foram de imediato cortadas. Só numa ocasião o fogo se tornou menos intenso: quando a maior parte dos habitantes de Dobrinja começou a abandonar as suas casas e a fugir pela colina que conduz ao centro da cidade. Foi o momento do grande dilema de Fliad Brcic, que via todos os seus amigos e vizinhos a abandonarem o bairro.
«Eu senti que tinha de ficar, não por patriotismo, mas por sentir que tinha de me defender, que não me podia render.»
Foram 12 mil os que pensaram como os Brcic e, por isso, quando, por fim, os sérvios penetraram no bairro, com intenção de capturar os últimos habitantes e ocupar posições, encontraram pela frente a resistência de pequenos grupos armados, gente que conseguira encontrar armas e munições não se sabe bem como, uma vez que o bairro ficou isolado do resto da cidade e da ajuda das forças governamentais -- situação que se prolongaria por mais de dois anos. Foi nesse dia, quando as forças sérvias não quiseram ou não puderam forçar o ataque e recuaram, que nasceu a auto-organização de Dobrinja, um sistema autogerido que iria permitir a sobrevivência do bairro e dos seus habitantes.
«Criámos uma espécie de governo próprio, porque estávamos cortados de Sarajevo. Esse nosso governo organizava tudo, com enorme disciplina, do sistema de distribuição de água ao socorro aos feridos.».
Abriram-se poços, estabeleceram-se escalas para a recolha de água, criaram-se regras para se poder correr de esquina em esquina fugindo ao fogo dos atiradores furtivos, organizaram-se sistemas de racionamento e distribuição da comida encontrada nas casas abandonadas, destruiu-se uma parte do mobiliário dessas mesmas casas para servir como lenha e até se improvisou um pequeno hospital graças à permanência, no bairro, de um médico árabe. Abriu-se mesmo um novo cemitério e voltou a recorrer-se às mobílias das casas abandonadas para construir caixões, ao mesmo tempo que se organizavam funerais de acordo com os ritos religiosos muçulmano, católico ou ortodoxo, conforme o credo de quem morria.
Hoje, Dobrinja ainda é um dos bairros da cidade onde a anormalidade está mais presente. É por aqui que passa o caminho que conduz a uma das entradas do aeroporto e que é utilizado por quem entra ou sai da cidade, em direcção ao Monte Igman. Todo o trânsito passa pelas ruas apertadas do bairro, entre estranhas trincheiras formadas por camiões, contentores, automóveis, placas de betão, tudo empilhado e alinhado na berma da estrada ou colocado em ângulos especiais, tudo destinado à protecção de quem circulasse nestas ruas do fogo «snipper».
«Aqui, fomos todos heróis», despede-se Fliad Brcic. «E lembrar-me como eu gostava deste bairro e desta cidade, lembrar-me de como antes sempre vivemos todos juntos, sem problemas...»
5. Entre o Oriente e o Ocidente
Às sete horas da manhã, no primeiro dia de Inverno, o dia mais curto do ano, ainda é noite. Mas o pequeno café Uranak, junto à antiga biblioteca, já recebeu os seus primeiros clientes: motoristas de camiões, soldados do exército bósnio, mecânicos de uma oficina vizinha. Todos se abrigam de um vento cortante que, canalizado pelo vale, torna ainda mais difícil suportar o frio.
Lá fora, ainda ecoam os últimos sons roucos do chamamento para a oração do «muhaezzin», uma melopeia rouca lançada a partir dos minaretes das mesquitas que enchameiam as colinas circundantes. Cá dentro, num ambiente pesado de fumo, o empregado serve o tradicional café turco enquanto a rádio transmite canções orientais. Por uma momento, pode ter-se a ilusão de estar num café do Cairo ou de Istambul. Uma falsa ilusão. Reparando melhor, nota-se que, junto ao balcão, lá está o inevitável «poster» com uma mulher nua, envolta em espuma, e que, em cima de todas as mesas, ao lado dos cafés, surgem cálices de «brandy», que os camionistas sorvem uns atrás dos outros. Podia-se estar à beira da Estrada Nacional 1 portuguesa, sensação que é reforçada quando a rádio interrompe a sequência de canções orientais para emitir uma melodia de Natal.
Nenhuma outra capital europeia poderia ser palco de um despertar semelhante, em nenhuma outra capital europeia se misturam, de forma tão íntima, o Oriente e o Ocidente. Estamos na parte velha desta cidade fundada no século XV pelos turcos -- o seu nome deriva mesmo de uma eslavização de «saraj», a designação turca para palácio. Ao longo dos séculos, Sarajevo sempre conservou uma estrutura multi-étnica e multicultural, evidente quando se penetra nas velhas e estreitas ruas da Bascarsija, se passeia por entre as lojas e os artesãos que se arrumam ao longo das construções baixas de madeira, como num bazar oriental, se passa pela grande mesquita erguida segundo o modelo de Santa Sofia e, nem cinquenta metros adiante, se desemboca no largo onde se ergue a catedral católica, de traça austríaca.
A principal igreja ortodoxa fica apenas um pouco mais adiante e a sinagoga do outro lado do rio. Na sua margem, rodeando o núcleo mais antigo da cidade e os seus bairros de maior presença islâmica, alinham-se os edifícios erguidos sob a dominação dos Habsburgos, no fim do século passado, e Sarajevo torna-se igual a tantas outras cidades centro-europeias. Esta mistura de estilos e de formas de viver conferem à cidade um ambiente muito especial, que a guerra não parece ter afectado. É como se o velho bazar de Istambul fosse habitado por austríacos, se se lhe mantivesse a ambiência oriental mas com a arrumação e a ordem mais próprias de Praga ou de Viena.
Antes da guerra, quando Sarajevo ainda contava cerca de meio milhão de habitantes, o recenseamento traduzia fielmente este multiculturalismo, numa mistura que só seria mais equilibrada em Mostar, onde as três comunidades se equivaliam. Aqui, o peso maior era dos muçulmanos -- 49,3 por cento, segundo o censo de 1991 --, seguindo-se os sérvios (29,9 por cento) e os croatas (6,6 por cento). Contava também com 1200 judeus, na sua maioria descendentes de uma comunidade aqui instalada por fugitivos vindos da Península Ibérica no século XIV.
Quatro anos depois, o número exacto de habitantes de Sarajevo é um segredo político que alimenta a propaganda das duas facções e pesa muito na luta pela obtenção dos favores da ajuda humanitária. Mas é seguro que a cidade não contará com mais de 300 mil habitantes, muitos deles refugiados oriundos das aldeias arrasadas pela guerra. Na Sarajevo legitimista, a controlada pelo Governo bósnio, permanecerão alguns milhares de sérvios -- 30 mil, segundo a versão oficial, provavelmente muito menos. Nos bairros controlados pelos sérvios de Pale, estes reivindicam a presença de 150 mil habitantes, mas as organizações humanitárias estimam que não habitarão aí mais de uns 50 mil sérvios, em boa parte também refugiados de guerra, muitos gente fugida dos outros bairros de Sarajevo.
6. Entre os sérvios de Grbavica
Era estudante de Geografia, mas a guerra deixou traços profundos no seu rosto. Os olhos azuis, enormes, fitam-nos com um ar assustado, os cabelos louros, empastelados, acusam a falta de limpeza. Mas são sobretudo os dentes, todos precocemente estragados, que traem as dificuldades porque passou. Chama-se Ljilja, tem 24 anos, é sérvia e está por detrás do balcão de uma pequena mercearia de Grbavica, o bairro onde se alojavam os franco-atiradores que martirizavam a zona do Holliday In de Sarajevo.
Quando a guerra começou, em 1992 e 1993, Ljilja ainda continuou a viver na sua casa de sempre, do outro lado do Miljacka, entre muçulmanos e croatas. Mas depois fugiu.
Porquê? Porque teve medo -- medo de ser morta. Se continuasse no outro sector da cidade, cortavam-lhe a garganta, garante, os olhos ainda mais abertos, um gesto rápido da mão a passar em cutelo diante do pescoço: «Eles lá mataram muitos sérvios.»
Grbavica é o único bairro central de Sarajevo que os sérvios conservaram em seu poder. É quase como uma testa-de-ponte que apenas o Miljacka separa da zona onde se situavam os museus, o Parlamento, o Palácio dos Desportos e os principais aquartelamentos do exército federal. Hoje, é um bairro quase fantasma, onde os sinais da guerra são, com frequência, mais evidentes que na parte muçulmana da cidade.
Muitos dos edifícios, sobretudo as torres de apartamentos, mostram os impactes das granadas disparadas pelo outro lado (muitas vezes em resposta aos fogo dos «snippers» que aqui se escondiam) e grande parte dos blocos parece desabitado. A cada esquina, surgem avisos contra os atiradores furtivos que, instalados no lado muçulmano, também fustigavam estas ruas e cordas com grandes panos pendurados correm ao longo dos cruzamentos, para esconder quem passasse das miras das armas muçulmanas. Nas ruas, cheias de neve, circulam muito poucos automóveis e quase só se vêem mulheres e idosos -- os raros homens que aparecem estão fardados. O pequeno mercado é de uma pobreza arrepiante: em cima das suas bancas, tudo quanto se oferece são maços de cigarros, tabletes de chocolate e, sobretudo, garrafas de um vodca muito duvidoso ou da aguardente local, martelada. O silêncio é pesado, apenas cortado pelo guinchar tétrico de bandos de corvos.
Para se chegar a Grbavica tem de se passar por uma ponte guardada por soldados franceses, que se intercalam entre o posto bósnio, numa margem, e o sérvio, na outra. No final da ponte, uma placa anuncia que se acabou de entrar na «República Sérvia da Bósnia» e todos os letreiros deixam de ser escritos em caracteres latinos para passarem a surgir em cirílico.
É que aqui, nestes bairros de Sarajevo retirados ao controlo muçulmano, deveria um dia surgir, de acordo com os projectos da liderança sérvia de Pale, a capital da sua nova república, repetindo no coração dos Balcãs a experiência -- e o drama -- de Berlim ou de Beirute. Não será assim: os acordos de Dayton estabelecem que estas zonas deverão regressar à administração bósnia, e este é um dos pontos mais delicados de concretizar.
«Gostava de poder continuar a trabalhar e a viver aqui, mas se eles vierem terei de me ir embora», diz Ljilja. Para onde? «Não sei, para qualquer local da República Sérvia.»
Há dias, em referendo, quase 99 por cento dos habitantes desta zona pronunciaram-se contra a possibilidade de passarem para a administração do Governo de Izetbegovic. Mas tudo indica que a maior parte dos que aqui vivem já se começa a conformar com a ideia de... fugir.
Em Ilidza, outro bairro sérvio que constitui uma espécie de bolsa isolada pelo aeroporto, começaram a formar-se, nos últimos dias, gigantescas colunas de automóveis atafulhados até ao tecto, muitas vezes com reboques, de habitantes que já estão a levar os seus haveres para fora do bairro. A preparar a retirada, se esta se tornar inevitável. Os seus dirigentes já só pedem o adiamento do prazo de 90 dias para a chegada da nova administração, reivindicando a entrega de urnas para poderem levar os seus mortos, esvaziando os cemitérios antes de, como já ameaçaram, destruírem e incendiarem tudo que é seu e não consigam transportar, para que os muçulmanos não tomem posse senão de ruínas.
«O meu pai é militar», diz-nos Toni, de 18 anos, em Grbavica. «Se eles vierem, o que será que lhe vai acontecer? Eu estou assustado, estavam assustados. Gostava de ficar, mas provavelmente terei de me ir embora, com a família.»
Para trás ficarão apenas os mais velhos, os idosos sem família, os que não puderem mesmo partir. Até porque existe a noção clara de que será muito difícil a quem quer que tenha sido soldado no exército sérvio da Bósnia esperar uma vida normal. O discurso das autoridades bósnias não deixa lugar a dúvidas: todos os criminosos de guerra terão de ser julgados. E em bairros onde a actividade dos atiradores furtivos dominou quase quatro anos de guerra, todos os homens em idade militar são potencialmente criminosos de guerra. Daí que ninguém queira esperar pela polícia bósnia ou confie na justiça.
Até porque, também aqui, as cabeças estão cheias de propaganda. Os sérvios destes bairros acreditam, por exemplo, que os únicos dois «trolleys» amarelos da cidade, que eles avistam ao longe a percorrer a grande avenida de Sarajevo, são os «trolleys» destinados ao sérvios que permaneceram do lado legitimista, numa espécie de «apartheid» de gosto balcânico.
Sobretudo todos pensam que eles é que são as vítimas da guerra, não os agressores, como nos dizia Mlado, um dos guardas da fronteira, apontando para o outro lado da ponte sobre o Miljacka e indicando a antiga escola industrial que frequentava antes da guerra rebentar e a que nunca pôde voltar, apesar dela distar menos de 50 metros.
7. A história vivida à flor da pele
«É imaginável que alguém queira vingar mortos de há 600 anos? Pois bem, é disso que os sérvios estão sempre a falar -- de vingar os que caíram na batalha do Kosovo, no século XIV...»
Kemal Muhic tem dificuldade em compreender a mentalidade sérvia e atribui aos líderes nacionalistas e extremistas, assim como à comunicação social, o exacerbar do sentimento nacional entre os que designa por «tcheniks».
Muçulmano não praticante, intelectual, responsável pela animação ideológica da unidade do exército em que está incorporado, Kemal gostaria de desvalorizar o peso que a história tem neste conflito, sobretudo a forma doentia como uma certa história mitológica continua a ser vivida bem à flor da pele pelos povos dos Balcãs. Mas, ao desenvolver a sua própria argumentação, não deixa de a rechear de referências históricas ou de conceitos populares tão arbitrários como profundamente enraizados.
É o caso da anedota que nos conta, garantindo que a profissão de maior prestígio entre os sérvios é a de soldado, entre os croatas a de padre e entre os muçulmanos a de operário. E logo deduz: «A sua cultura é guerreira, eles sempre gostaram mais de ir à caça do que nós, e enquanto nós temos por hábito colocar uma moeda debaixo da almofada os recém-nascidos, os sérvios colocam uma arma.»
Há, neste fio de pensamento, ideias feitas que contrariam todo o resto do discurso de Kemal, todo o seu esforço racional para olhar para as outras etnias da Bósnia de forma totalmente tolerante. Há também preconceitos.
Os sérvios parecem ser os que vivem a sua história de forma mais intensa, doentia mesmo. Basta dizer que o mito fundador da sua identidade não é uma vitória militar, mas a pior derrota sofrida pelas suas tropas em toda a história: o esmagamento da resistência sérvia ao ocupante turco na batalha do Kosovo em... 1389. Desde então que os sérvios se vêem a si mesmo como um povo oprimido e injustiçado, que tem de honrar os seus mortos de há seis séculos.
A história recente também contribuiu para avivar os seus temores e os seus ódios. É que, durante a II Guerra Mundial, sobretudo aqui na Bósnia, bandos de croatas sob a protecção de um estado-fantoche -- o Estado Independente da Croácia, patrocinado pela Alemanha nazi -- massacraram dezenas, talvez centenas de milhares de sérvios, em movimentos de limpeza étnica muito mais sangrentos que os desta guerra.
O nome porque ficaram conhecidos os fascistas croatas -- «ustasha» -- ainda hoje é utilizado para identificar os seus militares, da mesma forma que croatas e muçulmanos designam os soldados sérvios, ou mesmo todos os sérvios, por «tcheniks», denominação usada, também na II Guerra Mundial, para distinguir os guerrilheiros nacionalistas, por sua vez responsáveis por massacres de populações croatas. Isto é, os termos empregues ainda hoje pelo cidadão comum para, nesta guerra, designar o adversário invocam sempre um outro conflito que terminou há já meio século, rememorando as suas referências sangrentas, como se entretanto não tivessem existido décadas de convivência pacífica.
Só que a história também pode ser recordada de muitas maneiras, e não só para avivar recriminações mútuas e criar o medo do diferente, da outra etnia. A história também pode ser evocada para lembrar os anos, os séculos, em que se viveu em harmonia. É o que faz Esad Arnalitalic, um maestro que encontramos em Dobrinja, o «bairro dos heróis»:
«A Bósnia já existe há mil anos, não é agora que vai acabar. Na Bósnia já houve três impérios que aqui conheceram as primeiras derrotas ou iniciaram a sua ruína: o império turco, no século XIX; o império austro-húngaro, na I Grande Guerra; o III Reich, na II Guerra Mundial. Os criminosos que acicataram os ódios e provocaram esta guerra também hão-de quebrar os dentes na Bósnia.»
Foi, talvez, a mais optimista de todas as declarações que ouvimos nos últimos dias, desde que chegámos à Bósnia. Ouvimo-la, naturalmente, na Dobrinja, cuja sobrevivência foi um dos milagres desta guerra -- e onde se acredita, com naturalidade, que há mais milagres possíveis. x01cx02 7766
Retratos de Sarajevo
·Um filho no meio da guerra: Kemal e Zeljka nunca pensaram que a guerra ia rebentar. Se não, nunca teriam planeado ter Ervin, o pequeno que nasceu em Novembro de 1992, seis meses passados sobre os primeiros tiros, quando começava o primeiro dos Invernos de guerra, cerco, frio e fome. Casal misto -- Kemal, 35 anos, é muçulmano, Zeljka, 31 anos, é católica, de origem croata --, fazem parte daqueles que não gostam de falar da sua etnia ou cultura, ou mesmo religião, antes preferem simplesmente considerar-se bósnios.
Encontramo-los no seu pequeno apartamento, num dos bairros antigos de Sarajevo, numa casa onde vivem com os pais de Kemal e que estava a ser remodelada quando o cerco começou. O que foi, em parte, a sorte do casal: o dinheiro que tinham colocado de parte para comprar a mobília serviu para as maiores aflições durante o cerco. «Ao princípio, ainda acreditámos que não fosse durar, ainda acreditámos que uma intervenção militar exterior pusesse fim a tudo, mas o tempo passava e nada sucedia», recorda Zeljka. E o tempo passou até nascer Ervin.
Cedo ficaram sem água e sem electricidade, depois faltou o gás -- o que, com uma criança pequena e no clima de Sarajevo, tornava o dia a dia muito difícil. A água, por exemplo, tinham de ir buscá-la a três quilómetros de distância, à antiga fábrica da cerveja, e o transporte tinha de ser repetido várias vezes ao dia, obrigando a atravessar áreas que estavam sob o fogo dos atiradores furtivos.
Sem gás, não havia aquecimento em casa e a criança gelava. Para acender o fogão e cozinhar, foi necessário queimar tapetes e sapatos antigos. E, para comer, tornou-se indispensável recorrer à ajuda humanitária. Para a criança, sempre se arranjava leite; mas, de resto, pouco mais havia do que farinha, cozinhada das mais diversas maneiras, com imaginação e muito poucos recursos. Até porque o único dinheiro que entrava em casa era o do salário militar de Kemal -- como todos os homens, a guerra trouxe a sua quase imediata incorporação -- e, nessa época, no mercado negro, um quilo de açúcar valia o equivalente a três salários
«Todos os dias eram iguais, perdíamos a noção das semanas», recorda Kemal. «E as noites eram muito longas, pois deitávamo-nos muito cedo para fugir do escuro e do frio. Até nos esquecíamos das granadas, habituámo-nos aos estrondos. Nesta guerra, eu aprendi que há comportamentos, nas pessoas, que são anormais e podem escapar ao seu controlo. E que, postas à prova, as pessoas podem atingir limites que não conheciam antes.»
Sobreviver em Sarajevo ensinou a conhecer esses limites.
·Viver a sua vida: A sorte de Amela Mahmutagic, 28 anos, foi a previdência da sua mãe -- a capacidade de prever que a guerra vinha aí e de armazenar, em enormes quantidades, todo o tipo de mantimentos. E a sorte de Amela também foi ser médica, estar a acabar a sua formação como cirurgiã e nunca ter deixado de trabalhar durante a guerra.
A casa onde vive, num bairro relativamente moderno de Sarajevo, não é muito espaçosa mas percebe-se que, aqui, a guerra foi vivida de forma menos dura. Até o choro de uma criança de dois meses, na sala ao lado, indica que Amela quis continuar a lutar por ter uma vida o mais normal possível no meio da anormalidade. Mal acabou o curso, já o cerco se iniciara, e logo a falta de médicos no hospital fazia com que fosse chamada para funções que, em condições normais, exigiriam anos de treino. Agora bastava que estivesse presente, que logo lhe passariam um ferido para as mãos.
«Houve dias de recebermos 120, 150 feridos», recorda. «Para mim, era tudo novo, nunca tinha visto gente a sofrer, nunca tinha visto tanto sangue. E o pior era vê-los chorar, homens, crianças, todos. Houve muitas vezes que operei com as lágrimas a correrem-me pelos olhos.» Mas o hospital era, para Amela, como que uma anestesia. Vivia para ele, por vezes passando semanas sem ir a casa. Quase ignorava a guerra, sobretudo ignorava a política, e não sabia sequer da evolução das frentes ou da sucessão dos cessar-fogo.
Esta dedicação total ao hospital ia comprometendo a relação com Nermin, actual marido, que, mobilizado pelo Exército como médico, realizava apenas tarefas rotineiras e sem interesse, tornando difícil que passasse alguma corrente entre o entusiasmo de Amela e a tristeza de Nermin. O regresso do actual marido à vida hospitalar fez com que tudo fosse ultrapassado.
Muito pintada, com um certo ar de boneca, Amela teve ainda a sorte de a sua teia de relações familiares complementar a visão previdente da mãe. Primeiro, porque os pais tinham acumulado algumas poupanças depois de trabalharem na Líbia e, mais uma vez por influência da mãe, o dinheiro ter sido levantado a tempo. A irmã trabalhava na municipalidade e, graças ao seu emprego, era ela que trazia a água para casa, sem que a família tivesse de ir para as filas de espera. Uns tios, emigrados na Alemanha, foram enviando dinheiro e, desde que a criança nasceu, de lá enviam tudo o que ela necessita, do biberão aos medicamentos.
«Eu só quero que, agora, me deixem viver a minha vida. Me deixem trabalhar e ganhar o que preciso para ter uma vida decente», conclui. «E que possa, uma vez por ano, tomar um avião e ir de férias.»
·As forças que não se tem: A casa de Zijo e Vesna Kryavac parece um acampamento. Na sala, foi montada a cama de casal e os berços das duas crianças; o fogão foi adaptado para, simultaneamente, cozinhar e aquecer o ambiente, e está entre a cozinha e a sala, junto ao que em tempos foi um pretensioso «bar»; os brinquedos dos miúdos espalham-se pelo chão e por cima dos sofás, há roupa estendida sobre o aquecedor.
Mas a casa deste casal de arquitectos nem sempre foi assim ou nem sempre esteve assim organizada. Ela até possui mais dois quartos, onde antes dormia o casal e poderiam dormir os filhos. O pior é que esses dois quartos estão virados para uma colina de onde os sérvios costumavam visar a cidade -- e mais vale prevenir porque já houve que remediar. «Eu já fui ferido», conta Zijo, 35 anos. «Não foi grave, mas já fui ferido.»
Cumprindo a sua obrigação militar servindo na polícia, este arquitecto de profissão nunca mais esquecerá o dia em que, depois de regressar a casa, apressadamente, descobriu que a electricidade -- que tinha faltado durante quatro meses -- regressara por duas breves horas. Criou a ilusão de que ela poderia não faltar de novo e, nesse caso, talvez valesse a pena ir buscar água para pôr a funcionar a máquina de lavar. Mas, como estava muito cansado, decidiu descer para ir ao posto de polícia perguntar dessa possibilidade. Foi a sua sorte e o seu azar: azar, porque, quando estava na rua, caiu a poucos metros uma granada, matando logo um ciclista que passava; mas foi a sua sorte, porque estava com a cabeça meio dentro do «guichet» e o estilhaço que o feriu na cara só passou de raspão.
Levado para o hospital, foi sumariamente tratado e, depois, devido aos muitos feridos daquele dia, pediram-lhe para regressar a casa -- a pé, naturalmente. Zijo não conseguiu. A meio caminho, acabou por sucumbir na casa de uns amigos, a quem foi pedir ajuda.
Para Vesna, 33 anos, as semanas que se seguiram foram as piores de todas. Com os filhos pequenos e o marido inutilizado em casa, a necessitar de lhe servirem a comida na boca, todo o trabalho recaiu sobre ela. E o pior era ter de ir três vezes por dia buscar água nas enormes vasilhas que pesavam chumbo. «Estava tão cansada e tinha ainda tanto para fazer que me lembro de que, quando saía e soava o alarme, eu já nem ligava, seguia em frente sem me abrigar. Entregava-me nas mãos do destino. Foram talvez os únicos dias em que não tive medo de ser atingida por uma granada. Hoje, quando recordo esses dias, nem sei onde encontrei as forças para fazer o que fiz.»
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