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<DOCNO>PUBLICO-19951229-049</DOCNO>
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<DATE>19951229</DATE>
<CATEGORY>Local</CATEGORY>
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Realojamento do Asilo 28 de Maio, no Porto Brandão
Um Pai Natal chamado Guterres
Vítor Faustino
António Guterres volta hoje ao Asilo 28 de Maio, no Porto Brandão, com uma prenda de Natal. São casas para realojar mais de 600 pessoas que vivem de forma sub-humana. Há dois anos, prometera tudo fazer para resolver o problema. Cansados de promessas, no velho edifício ainda há quem não acredite no Pai Natal.
O primeiro-ministro António Guterres volta hoje ao Asilo 28 de Maio, no Porto Brandão, concelho de Almada, dois anos depois de, como líder da oposição, ter visitado aquele «casarão» onde vivem miseravelmente cerca de 180 famílias. Em Dezembro de 1993, prometera que não iria desistir de realojar os moradores, hoje, vai assistir à assinatura de um protocolo entre a Casa Pia de Lisboa (actual administradora do imóvel), o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE) e a Câmara de Almada, destinado à construção de 14 edifícios no Monte de Caparica para concretizar os realojamentos. Em Março será lançado o concurso para a adjudicação da obra, que deverá começar no Verão de 1996 e o realojamento será feito antes do Natal de 1997.
Ontem, corriam rumores nos corredores labirínticos do antigo lazareto, onde, no século passado, os regressados do Ultramar ficavam de quarentena, para não contaminar Lisboa com doenças tropicais. «Sim, ouvimos dizer que o primeiro-ministro vem cá, mas não sabemos para quê», dizia Emídio da Silva, um ex-funcionário público em Angola. «Casas? Há já 20 anos que ouvimos essas promessas, mas só quando vir a chave na mão é que acredito, é tudo farinha do mesmo saco», comenta, abanando a cabeça. «Mas nunca é tarde», remata-lhe a caboverdeana Maria do Nascimento. «Se não serve para a gente, serve para as crianças, que não têm culpa de nada», conclui a vizinha. Sentados frente ao pequeno café à entrada do Asilo, exprimem o sentimento que paira entre os restantes moradores: uma mistura de cepticismo e esperança.
«Eu não acredito que ele venha, com tantas responsabilidades, a agenda e essas coisas... vinha cá agora !», espanta-se um morador, que desce as escadas com cuidado -- a madeira há muito que apodreceu --, transportando um alguidar. Sorri. «Isto? É para aparar a água do tecto, chove cá dentro como lá fora». «Se ele vier, é melhor trazer galochas», comenta-se num grupo de mulheres. Os poucos que estão durante o dia no Asilo atarefam-se a consertar os últimos buracos provocados pelas fortes chuvadas. A Maria de Fátima Carona caiu-lhe mais um pedaço de tecto: «Tanta lágrima que já deitámos, que ao menos o senhor António Guterres ampare a gente». Maria de Fátima mora ali há pouco tempo, mas o marido é um «veterano» do Asilo. Casos como o dela terão de ser reequacionados pelo Governo, já que o concurso para os novos fogos tem como base um levantamento feito no Verão de 1993 pela Casa Pia e Câmara de Almada, apontando-se então para a existência de 624 pessoas. Nestes dois anos, famílias desmultiplicaram-se e novos residentes chegaram. Fonte do Governo garante, contudo, que o recenseamento vai ser actualizado.
Laurindo Gonçalves e António Almeida Lopes estavam ontem atarefados a secar velhos móveis, depois de o tecto ter abatido parcialmente com a chuva. «Estou aqui há 13 anos, sempre a ouvir essa história de irmos ter casa. Mas é verdade que ele [António Guterres] prometeu muitas coisas e está a cumprir», diz Laurindo, apoiado por António Lopes.
A única coisa de que Laurindo terá saudades é do seu pequeno quintal, onde fez uma espécie de «horta tropical», que mostra com orgulho. Bananeiras, abacates, inhames, feijão-pedra, cana de açúcar, num pequeno terraço sobre um dos fossos do Asilo. Algumas rolas e periquitos fazem as delícias das suas duas filhas. Por detrás das capoeiras, a antiga piscina do complexo -- que depois de lazareto foi asilo e por último, antes da grande ocupação de 1975, colégio interno -- é agora um imenso vazadouro de lixo de toda a população.
Estado assegura 100%
Quando a comitiva governamental entrar pelo portão que leva ao Asilo 28 de Maio, saindo da estrada do Porto Brandão, terá que percorrer um caminho de terra batida onde dificilmente passa um automóvel, tantos são os buracos. Há um abaixo assinado a correr entre os moradores para que seja reparado. «O taxi não vem, as ambulâncias também não e as crianças têm que andar no meio da lama até à escola», descreve Laurindo Gonçalves. É aqui que entra a Câmara Municipal de Almada. Segundo o protocolo que hoje é assinado, a autarquia garantirá os serviços mínimos de manutenção e salubridade do antigo asilo.
O IGAPHE comparticipa com os terrenos infra-estruturados em Alfazina de Cima, no Plano Integrado de Almada, a 500 metros da futura estação de comboios do Pragal. A Casa Pia, a quem foi entregue pelo Estado a gestão do Asilo 28 de Maio, suportará os custo de construção dos edifícios, que terão 3 e 4 andares. Ao todo um investimento de 1,1 milhões de contos. A Casa Pia pode, agora, retomar o seu velho projecto de reconversão do imóvel numa unidade hoteleira de luxo, que financiará o realojamento. A localização não podia ser melhor: na encosta sobre o Tejo, tem acesso ao rio e um pequeno cais.
«É o cumprimento de um dever, em apenas dois meses, felicito o engenheiro António Guterres», congratula-se a comunista Emília de Sousa, presidente da Câmara de Almada. «Sempre dissemos que a resolução deste problema era da responsabilidade do Governo, no entanto, não deixámos de fazer o levantamento das famílias e inclui-las no nosso PER», acrescenta a autarca, lembrando que foi a sua autarquia a fazer as diligências para que a Casa Pia pudesse promover o realojamento. É que na legislação que criou o Plano Especial de Realojamento, em 1993, só as instituições particulares de solidariedade social, além das câmaras, se podiam candidatar ao plano de realojamento, comparticipado em 50 por cento pelo Estado. Sendo a Casa Pia uma instituição pública, ficava arredada do plano (ver PÚBLICO de 30-9-1993). Revertendo, depois de devoluto, o imóvel para a Casa Pia, a autarquia não estava interessada em suportar os custos de um problema que não era seu. Depois de várias insistências de moradores e da Câmara de Almada, o último obstáculo jurídico à resolução do problema foi removido com a publicação do decreto-lei 87/95, de 5 de Maio, cujo artigo único autoriza «pessoas colectivas de utilidade pública que prossigam fins assistenciais» a beneficiar do PER.
Curiosamente, em 1992, a comissária de Luta Contra a Pobreza respondeu ao provedor da Casa Pia de Lisboa, que tinha pedido ajuda à Comissão, que a resolução do caso do 28 de Maio não se inseria nos objectivos e no «âmbito dos projectos de luta contra a pobreza». José Manuel Domingos, a viver há 22 anos no antigo lazareto, não sabe nada disto. Apenas sabe que a sua mãe morreu ali, que vive em dois quartos com quatro irmãos e que não dorme de noite com medo das ratazanas. Temendo constantemente, comenta o projecto de hotel de cinco estrelas que se erguerá naquele lugar: «Isto devia era cair de vez, não deixa saudades, só fantasmas da miséria de quem aqui viveu».
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