Carta aberta

Reproduzimos aqui na íntegra a seguinte carta de Miguel Filgeuiras que nos chegou às mãos dia 12 de Março em formato electrónico, com a seguinte mensagem explicativa:
Junto envio cópia de uma carta aos Presidentes do Observatório das Ciências e das Tecnologias e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (com cópia ao Ministro da Ciência e Tecnologia) sobre o aparecimento de ``Processamento Computacional da Língua Portuguesa'' como um domínio científico. Decidi difundir esta mensagem por que considero que estão em causa princípios fundamentais que eu e, com toda a certeza, muitos outros investigadores, não quereremos ver desrespeitados.

Com os melhores cumprimentos,

Miguel Filgueiras


Assunto: Perfis dos domínios científicos em Portugal

Tendo recebido a circular da Ex.ma Presidente do OCT sobre o assunto acima referido, não posso deixar de comunicar a Vossas Excelências a minha estupefacção ao constatar que as entidades governamentais de gestão e acompanhamento da I&D em Portugal consideram o ``Processamento Computacional da Língua Portuguesa'' como um domínio científico a par com, por exemplo, a Física, a Matemática, ou as Ciências da Saúde.

Há dois factos que gostaria de expor sobre esta questão. Primeiramente, o campo do ``Processamento Computacional da Língua Portuguesa'' só pode inserir-se, do ponto de vista científico, em duas áreas mais vastas e que têm vindo a convergir: a Linguística Computacional e o Processamento de Linguagem Natural. Por sua vez, estas inserem-se na Linguística e na Informática ou Ciência de Computadores. Ou seja, o dito ``Processamento Computacional da Língua Portuguesa'' só pode ser tratado como sub-sub-domínio, se é que se pretende que haja algum sentido na designação ``domínio científico''.

O segundo facto tem a ver com o conteúdo desse sub-sub-domínio. É evidente que há todo o interesse em que a língua portuguesa seja suportada pelo software existente e a produzir. Para tal há duas questões a resolver: fazer-se o levantamento e a descrição (em moldes apropriados a um tratamento informático) do português, e fazer-se a investigação que permita obter ou melhorar as possibilidades de tratamento informático da língua. Se quanto à primeira não há dúvidas de que depende estritamente do português, quanto à segunda, defender essa dependência é, no mínimo, ridículo. De facto, não há absolutamente nenhum fundamento científico para o fazer: será que se poderia aceitar a existência de uma Física dos Átomos Portugueses, de uma Teoria dos Números Portugueses ou de uma Engenharia de Máquinas Portuguesas? Do que conheço da área de Processamento de Linguagem Natural posso dizer que não me consta que em parte alguma do mundo tenha vingado qualquer iniciativa cientificamente credível deste tipo. Muito pelo contrário, a tendência sempre foi para se tentar abarcar o maior número possível de línguas nos estudos a realizar. Será que em Portugal se vai premiar o reducionismo e se vai financiar apenas os que trabalham no processamento do português em detrimento dos que trabalham em processamento de línguas, sejam elas qual forem?

Em conclusão, e ressalvando a necessidade de se proceder ao levantamento e à descrição ``computacional'' do português, a proposta como domínio científico do ``Processamento Computacional da Língua Portuguesa'' talvez possa ser vista como mais um produto da imaginação portuguesa. Eventualmente deverá ser encarada como um processo de promover certo tipo de actividades que não se poderiam afirmar de outro modo, na tradição portuguesa da criação de ``capelinhas''. Em paralelo, poderá promover a especialistas os falantes-ouvintes do português que numa área um pouco mais alargada não seriam mais do que meros curiosos. Enfim, tem de facto inúmeras vantagens para muitos.

No entanto, que as entidades governamentais dêem cobertura a tal proposta choca-me como investigador conhecedor do assunto, como contribuinte que irá pagar uma parcela (mesmo que ínfima) dos seus custos, e como cidadão que não gosta de ver o seu país no ridículo. Não posso, portanto, deixar de exprimir esta minha opinião que, com toda a certeza é compartilhada pelos investigadores em processamento computacional das línguas.