Professora Isabel Hub Faria – Departamento de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Bom… tenho estado a ouvir várias intervenções e queria pôr uma questão que me tem causado alguma perplexidade e que é a seguinte: resolvido o problema do processamento automático em português, como é que se resolve o problema do conhecimento gerado com o processamento automático do português? Ou seja, independentemente das pessoas serem capazes de comunicar e essa comunicação ser tratada automaticamente, que conhecimento subjaz, ou está por trás, ou está no topo das palavras que se trocam? E, exactamente por causa desta questão, penso que nesta discussão não tem aparecido uma perspectiva epistemológica e é essa questão que eu gostaria de colocar.
O desenvolvimento epistemológico operado no âmbito da linguística levou a que, indubitavelmente, a linguística computacional seja hoje um dos ramos da linguística mais produtivos, cujo desenvolvimento importa observar pelo que ele comporta de avanço no conhecimento e no uso do conhecimento. Por um lado, a nível do mercado, a linguística computacional abre uma inegável via produtiva de interacção com a indústria; por outro lado, representando de facto o papel de área despoletadora de investigação e desenvolvimento, a linguística computacional tem necessariamente de assumir a sua quota parte na liderança do desenvolvimento teórico e epistemológico no âmbito das neurociências cognitivas. É no âmbito das neurociências que a linguística computacional vai buscar as metáforas de que se alimenta ao longo de décadas e mal estaria se a avaliação da produtividade na sua área a obrigasse a canalizar e a gerir preferencialmente os seus interesses na dimensão redutora da indústria. Tal situação, no caso português, no meu entender, seria o mesmo que condenar a prisão perpétua um adolescente que estivesse à beira de atingir a maioridade. Cuidado pois com o que se avalia e como se avalia. Aqui, como em qualquer outra área de possível investimento, vale a pena ver se os meios usados para avaliação não conduzem a que se poupe na farinha e se gaste no farelo. Ou, para ser menos eufemista, creio que é preciso começar por lembrar, numa reunião deste tipo, desencadeada a partir de instâncias com poder de planeamento, capacidade de decisão e meios de gestão, que a linguística computacional dificilmente se desenvolverá ou atingirá a maioridade se o apoio institucional não apostar na investigação fundamental e na formação inicial dos investigadores, que se faz e terá de continuar a fazer-se, por excelência, nas universidades. Só a universidade assegura que a produção num determinado ramo de saber não fique esgotado no consumo público das aplicações que disponibiliza. Nesta perspectiva, não se trata de questionar a oportunidade de ligação da universidade à indústria, mas de, assegurada essa ligação, não correr o risco de colocar o saber produzido numa posição de ser analisado ao sabor do mercado e das suas leis, ora como farinha, ora como farelo.
À linguistica computacional convém assegurar a relativa autonomia do seu território simultaneamente no âmbito do mercado e no âmbito das neurociências, admitindo que, sem o apoio da Universidade, a muito curto prazo, correrá o risco de ser computacional, mas não ser linguística, e sem o apoio da indústria, poderá ser linguística, mas não ser de facto computacional.
Se chamo a atenção para estes aspectos, é porque vislumbro, na forma de organização desta jornada de trabalho, uma falha de partida. Convocam-se os agentes de produção de investigação, quase todos eles financiados fora das universidades, convoca-se a indústria e não se convocam, no mesmo pé de igualdade, por exemplo, os departamentos que na universidade são responsáveis pelos cursos de formação dos actuais e dos futuros agentes de investigação. É como se, de facto, os departamentos, enquanto tal, não tivessem por princípio nada a dizer sobre este assunto, ou não tivessem assumido institucionalmente, de há anos a esta parte, o papel que as agências de investigação e o Ministério da Ciência e Tecnologia, que as tutela, afinal nunca assumiram: o de planear atempadamente o desenvolvimento dos agentes de produção nesta área, de modo a que se passasse da situação de free-lancer na área, que foi a realmente vigente nas décadas de 70 e 80 em Portugal, para a formulação e avaliação das condições necessárias à formação científica de base dos investigadores em engenharia da linguagem. Sem o planeamento de pessoas e saberes, dificilmente se passará, na área da linguística computacional, da gestão quotidiana de projectos que herdamos de fora, da adesão feita a reboque da iniciativa internacional ou da elaboração de projectos que se esgotam a médio prazo.
É verdade que o documento que desencadeou a discussão neste fórum, da autoria da Diana Santos, não levanta qualquer questão epistemológica, i.e., não situa o desenvolvimento da linguística computacional nem no âmbito do desenvolvimento da linguística nem das Ciências Cognitivas em geral (cf. Faria, I.H., Pedro, E.R., Duarte, I. e Gouveia, C.A.M. (orgs.), Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, Lisboa; Caminho, pgs.11-23) e, relativamente à formação universitária em engenharia da linguagem, coloca, por ignorância do processo que esteve na base da formação do curso e da cooperação iniciada entre a faculdade de Letras e a a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, uma perspectiva errada à partida. Suponho, no entanto, que tal documento não teve outra intenção senão a de desencadear a discussão que está a ter lugar, cabendo portanto aos interventores e às instituições promotoras deste fórum a eventual incorporação da informação que aqui se vai trazendo e a reformulação do que já se sabe errado. Desconhecer a existência da licenciatura em engenharia da linguagem é despropositado, já que todos sabemos que, hoje em dia, parte da investigação que se faz em Lisboa integra um conjunto já significativo dos melhores alunos desse curso. O desconhecimento da sua composição e desenvolvimento curricular é tão inoportuno quanto é sabido que muitos dos responsáveis por projectos subsidiados nesta área são igualmente professores desse curso. Se, por razões conjunturais, nomeadamente de autonomia de gestão financeira, os grandes projectos em linguística computacional começaram por ter lugar preferencialmente fora da universidade, a situação actual já é outra e pode estruturar-se no sentido de não perpetuar tal estado de coisas. Não é admissível que a capacidade científica de direcção de projectos mude, quando os mesmos professores universitários assumem responsabilidades equivalentes dentro e fora da universidade.
A partilha do conhecimento tem inevitavelmente de se fazer num país com a dimensão do nosso, pequenino, a nível da prioridade dos objectivos a atingir, da totalidade das pessoas investidas, dos meios e dos bens. E convém lembrar que formar equipas interdisciplinares não é o mesmo do que organizar planos de distribuição de trabalho específico.