Professor José Mariano Gago – Ministro da Ciência e Tecnologia

Muito boa tarde a todos. Eu devo dizer que é francamente mais difícil fazer o encerramento dum debate ao qual se assitiu todo, desde o princípio ao fim - eu estive durante toda a manhã lá em cima a ouvir e agora à tarde aqui e ouvi todo o debate e estive presente em todas as intervenções – do que se só tivesse chegado aqui agora com ideias feitas. Mas é também uma das riquezas deste debate, que eu gostava de agradecer. Gostava em primeiro lugar de agradecer o trabalho e a contribuição e o esforço da Doutora Diana Santos no trabalho que elaborou e que serviu de base para esta discussão, não só como trabalho escrito final que aqui está, mas como trabalho de interacção ao longo destes meses na Internet, que também tenho acompanhado activamente. Gostava de agradecer muito especialmente aos nossos colegas de outros países, quer ao Professor Fernando Pereira, que é da nossa nacionalidade, mas que está longe, que nos dá esta alegria de estar aqui connosco, quer aos colegas de outros países que quiseram contribuir para este nosso debate e este nosso problema. Eu só vos peço que não pensem que o vosso trabalho acabou. E portanto, peço-vos que fiquem um pouco connosco algum tempo e que já que exprimiram algumas… uma enorme apreciação sobre o diagnóstico e algumas dúvidas sobre a terapia, que corram o risco de acompanhar o exercício de terapia até ao fim, como forma de que a vossa contribuição e a vossa experiência e sobretudo, a capacidade de interacção com experiências que outros países estão a fazer neste momento – países grandes, países pequenos – possam beneficiar o processo que queremos desenvolver e que estamos a desenvolver em Portugal.

Esta questão do processamento computacional da língua portuguesa, que é um problema que se debate em Portugal há vários anos, tem, se me perdoam a irreverência da comparação, tem alguma comparação com outra área completamente distinta, na qual também, ao longo de muitos anos, a desproporção entre ambição e realização foi o traço mais marcante. Ambas têm de comum o facto de terem a ver com, de certa forma, recursos específicos de Portugal. Refiro-me evidentemente à área do mar e às ciências e tecnologias do mar. Grande ambição científica desde há muitas décadas, cuja realização prática tem sido sempre carente, que hoje se relança de novo também, provavelmente porque a comunidade científica é outra, porque os meios de trabalho e os instrumentos de trabalho se renovaram e porque a capacidade de participação de outras especialidades científicas, que não aquelas que participaram no domínio há vários anos, hoje permitem encarar com nova esperança o desenvolvimento dessas áreas.

O caso do processamento computacional da língua levanta todos os problemas da política científica, como aqui numa amostra muito simples, tivemos ao longo deste dia: os problemas da relação entre o ensino básico, o ensino de graduação e o ensino de pós-graduação; o problema da organização das universidades; o problema da relação entre investigação fundamental e designadamente investigação fundamental em ciências e noutras ciências básicas e investigação aplicada; o problema da relação entre a investigação e a produção de produtos; o problema da relação entre a universidade e os institutos de investigação e as empresas; e ainda o problema do papel do Estado nesta matéria, não só como financiador, mas eventualmente, ponto de interrogação, como organizador da própria investigação, como mandante de investigação e lider de instituições de investigação, como acontece nalguns países e não noutros. Todos estes problemas são comuns a todas as áreas científicas. São contudo mais prementes nas áreas problema, que não são propriamente disciplinas, mas que são num determinado momento, sectores de actividade, designadamente quando a esses sectores corresponde uma história de grande separação institucional, nas origens institucionais, nas formas de ver o mundo e de ver a ciência, na formação básica das pessoas e nas oportunidades de emprego e de carreira das pessoas. Eu não gostava de deixar de saudar, porque acho que é muito fácil de criticar e muito difícil de aplaudir e de agradecer, acho que dito o que disse, isto é, que considero de facto que a situação na área em Portugal é uma situação que eu podia caracterizar de ano zero. Não estamos mais do que isso. Desculpem a análise de quem vem duma área ainda que insuficiente, duma ciência madura em termos internacionais, isto é o ano zero do desenvolvimento do sector. Mas o esforço que foi feito por pessoas da engenharia e da informática, para aprenderem, se interessarem, se colocarem do ponto de vista daquilo que são tradicionalmente as letras, as ciências humanas, foi enorme. E também o esforço das pessoas que tradicionalmente foram formadas num mundo completamente alheio, completamente distinto do da engenharia ou da informática, o mundo das letras, o mundo das ciências humanas foi também muito grande. Eu imagino as dificuldades internas das instituições, as dificuldades dos grupos, as dificuldades pessoais que tudo isto arrastou, para conseguirmos estar aqui hoje juntos, com todas as dificuldades que temos pela frente.

Trata-se agora de ir um pouco mais longe e de, com toda a franqueza, de mudar de escala. E acho que é indispensável mudar de escala e não simplesmente fazer do mesmo e continuar gradualmente o que temos vindo a conquistar ao longo dos anos. Podem-me dizer e porquê? Por que razão é que há essa necessidade de mudança de escala? Eu aqui julgo que o elemento fundamental que determina a necessidade de mudança de escala está no exterior da investigação científica e das instituições científicas. E está no desenvolvimento das aplicações sociais das tecnologias de informação. É essa mudança social que determina que hoje não é possível aos Estados e às instituições científicas ou universitárias continuarem com um progresso certamente muito positivo, mas insuficiente, nesta matéria, na integração de respostas da comunidade científica a estes problemas sociais. Acresce ainda aqui uma lógica de Estado e portanto uma lógica em defesa das oportunidades dos cidadãos desse Estado, que são na maioria, na esmagadora maioria dos casos, não só pessoas que falam exclusivamente o português, no caso em apreço, que têm uma competência cultural e uma fruição de bens culturais relativamente limitada, mas aos quais se dirigem crescentemente benefícios ou não da utilização de tecnologias de informação. O desenvolvimento das oportunidades dadas pelo uso social das tecnologias de informação hoje toca as mais variadas áreas, desde o lazer à economia, à mudança de hábitos de trabalho, mas também à própria constituição dos Estados democráticos: à relação com a informação, ao acesso à informação pública, ao saber o que estão a decidir por nós. Tudo isto obriga a uma atenção nova relativamente ao uso das tecnologias de informação pela generalidade das pessoas. E é precisamente o facto de ser uma prioridade política a maior acessibilidade das pessoas, designadamente daquelas de menores recursos, educacionais e económicos, às tecnologias de informação e à sua utilização social, insisto, é o facto de ser uma prioridade política a maior acessibilidade que coloca, do ponto de vista da prioridade, a língua e o processamento computacional da língua no primeiro plano. Esse é o objectivo que, do ponto de vista do Estado, está aqui presente como um objectivo maior e é aquele que faz com que, ao contrário do que acontece em muitos outros domínios e em muitas outras áreas problema, estejamos já não só perante uma oportunidade, mas perante uma ameaça. A ameaça de excluir grande parte dos nossos concidadãos, já para não falar das nossas empresas, das possibilidades de utilização social das tecnologias de informação em prol de uma sociedade que seja um pouco melhor, um pouco menos injusta e um pouco mais livre.

Esta questão, que é provavelmente fácil de enunciar, é certamente de difícil resolução. É de difícil resolução porque todos nós fomos formados e temos pela frente um estado de coisas e uma divisão de fronteiras institucionais, uma história na formação de cada um dos grupos que aqui estão, quer sejam universitários, científicos, empresariais, da qual temos muita dificuldade em nos desligar. Mas contudo, é disso que estamos a falar. Para mudarmos de escala, temos de ter a certeza que dentro de 10 anos, o panorama nesta área em Portugal será totalmente diferente. Se não for totalmente diferente, significa, é possível que isso aconteça, eu não gostaria, certamente nenhum dos que estão presentes nesta sala gostaria, mas significa que perdemos. E muitas vezes na história portuguesa se perdeu. Houve consciência suficiente para diagnosticar os problemas, para diagnosticar as soluções, para perceber onde estavam as ameaças, mas não houve ou coragem ou capacidade para os enfrentar com sucesso. Não creio que esteja garantido que vamos ser capazes de enfrentar este problema e esta ameaça com sucesso. Agora há uma coisa de que não nos poderão acusar. É de não termos tentado. Eu peço desculpa de que muito do que vou dizer - em parte até porque conheço, sou amigo, fui professor, colega de muitas das pessoas que estão nesta sala – tenha um tom um pouco moralista. Mas há uma forma peculiar de divisão em Portugal, que é um sintoma de angústia perante o futuro e perante as nossas próprias capacidades de superação dos problemas e que é particularmente letal. Neste momento, seria de facto mortal se mantivéssemos essa atitude entre nós e se não conseguíssemos acreditar na montagem de esquemas eficientes de mudança de escala. Um dos nossos colegas dizia "não se trata de montar um esquema unificador, que responda a todos os problemas e a todas as necessidades, à investigação básica e à investigação aplicada, aos problemas das empresas e do mercado, aos problemas da relação entre ciências cognitivas e processamento computacional, etc", não. Isso é obviamente impossível. Trata-se precisamente de encontrar instrumentos adaptados a cada um dos problemas e manter essas soluções no quadro de uma estratégia e de uma pilotagem global que faça sentido.

Ouvi muito falar ao longo do dia, sem que houvesse, apesar de muitas verdades terem sido ditas nesta sala, sem que nunca houvesse um real debate sobre esse problema e eu convido-vos a fazerem esse debate, ouvi muito falar sobre o problema da disponibilização dos resultados: disponibilização dos resultados da investigação, disponibilização de corpora, etc. Este problema tem de ser absolutamente clarificado. Eu posso-vos garantir que, da parte que diz respeito ao Estado, eu exigirei que esse problema seja clarificado. Não é possível manter nesta matéria ambiguidades. Eu não sei o que está a acontecer. Sei que há queixas dum lado e doutro, que há afirmações que são contraditórias. A ciência é o mundo da verdade e se nós não formos capazes de resolver a verdade nestes problemas mais simples, duvido que sejamos capazes de a resolver nos problemas mais complexos, que são os problemas da investigação e da descoberta. Uma coisa é certa. É absolutamente indispensável que o mais rapidamente possível ultrapassemos carências que todos nos apontam, os estrangeiros em primeiro lugar, que todos nos apontam, de bases de dados, de elementos de base, de matéria prima quer para a investigação, quer para a produção comercial de produtos sem o qual a língua não existe. É uma coisa absolutamente básica. Não existe língua hoje em dia, se não houver livros publicados, ou seja, indústria livreira. Não existe língua agora já, mas certamente não existirá língua, nem cultura, nem civilização em torno dessa língua dentro de 10-20 anos, se a produção, a edição em formato digital, o seu processamento, a recolha de informação, o tratamento de informação não estiverem profundamente enraízados nas oportunidades de negócio em Portugal e doutros países. Não é possível dissociar, não é possível dissociar nunca a economia da cultura. Neste campo concreto é ainda menos possível dissociar a economia da cultura. Não há aqui as empresas, por um lado, que têm a maldição de querer fazer negócio e os investigadores por outro que têm a benção de produzir a verdade. A benção de produzir a verdade, se ninguém produzir os instrumentos que de facto toda a gente deve utilizar, não serve para nada. O outro lado também não consegue, de maneira nenhuma, funcionar se a investigação não lhe servir de apoio. Se hoje em dia já existe alguma migração de pessoas do mundo da investigação para dentro das empresas, essa migração ainda é muito insuficiente. É verdade que ainda hoje temos muitas deficiências de recursos humanos, ainda há pouco a Isabel Trancoso me dizia a dificuldade que existe do mundo académico e do mundo das universidades em convencer grande parte das empresas a recrutar a níveis superiores e designadamente a níveis pós-graduados. Mas o mesmo é verdade… o inverso também é verdade. Também é verdade que em muitos casos, a universidade e os institutos de investigação só querem ouvir das empresas o que lhes convém e têm dificuldade em ouvir as mensagens que as empresas, na língua que conhecem, são capazes de lhes transmitir. O que vos gostava de transmitir com a maior ênfase que possa transmitir-vos é que ou se salvam todos juntos, ou vão para o fundo todos juntos. Não há aqui ninguém que se possa salvar sózinho.

Existem instrumentos públicos de apoio a estes desenvolvimentos? Existem. Mas precisam contudo de ser especializados e reforçados. Existem instrumentos genéricos que apoiam a investigação em consórcio. Têm sido fracamente utilizados neste domínio. Têm sido muito utilizados noutros domínios, designadamente em domínios de engenharia mecânica, electrotécnica, química, farmacêutica ou outra. Têm sido pouco utilizados neste domínio e contudo, são instrumentos abertos, sem definição disciplinar à partida. O que quer dizer esta deficiente procura de instrumentos de investigação em consórcio nesta área? Não sei e importava esclarecer. Porque outras áreas científicas e tecnológicas eventualmente menos problemáticas têm demonstrado maior dinamismo na utilização destes instrumentos de apoio financeiro do Estado. O mesmo se passa relativamente aos projectos de investigação ou às bolsas de estudo. Gostava de recordar que a política que seguimos nesta matéria, relativamente às áreas científicas, é uma política de total garantia de independência do Estado relativamente às diferentes áreas científicas. Nós entendemos que compete ao Estado garantir absolutamente a liberdade de investigação académica. Não é o Estado que deve dizer se a matemática, a física ou a química são preferíveis à biologia, à geologia ou à informática. Esse assunto não interessa ao Estado, a única coisa que lhe interessa, desse ponto de vista, é que se garanta a liberdade académica, que se combata o isolamento entre as instituições, que se combata o isolamento entre as instituições científicas e a sociedade, o isolamento entre o país e o estrangeiro e que a qualidade científica, aferida pelos próprios investigadores, num quadro tão internacional quanto possível, seja garantida pelo poder regulador do Estado. A ideia de áreas científicas académicas prioritárias definidas pelo Estado é uma ideia que recuso em absoluto. Isto não significa que para lá desta política de base, de garantia absoluta de recursos financeiros para o desenvolvimento da investigação em todas as áreas científicas segundo critérios estritos de qualidade e de abertura, o Estado não defina objectivos de interesse público, problemas de interesse público, ou porque não há pessoas em Portugal ou instituições para o resolver e por isso é preciso criar – e essa criação é assim prioritária. É mais prioritário provavelmente investir naquilo que não temos em Portugal e que temos absolutamente de ter. Isso, em geral, custa até muito pouco dinheiro. E por outro lado, em áreas problemas de interesse público estratégico. O caso da língua portuguesa é provavelmente o mais evidente desses casos e o caso do processamento computacional da língua portuguesa, pelas razões que expus anteriormente, que são essencialmente razões ligadas ao desenvolvimento da sociedade de informação no mundo e das oportunidades de utilização social das tecnologias de informação, tem aí todo o seu lugar.

Era isto que tinha para vos dizer. Há agora o problema do futuro. Os programas, os debates não se esgotam em reuniões, por mais participadas que elas sejam e por mais informadas que elas sejam. O trabalho que começou através do forum de discussão que foi lançado, através dos documentos de base que a Doutora Diana Santos colocou na Internet à discussão de todos – e desde já agradeço a todos aqueles que quiseram ao longo destes meses contribuir para o enriquecimento dessa base de dados e desses documentos – vai continuar. Esse trabalho tem de continuar como um elemento agora de base permanente do desenvolvimento do processamento computacional da língua portuguesa, é assim que entendemos dar prioridade a este desenvolvimento. Vamos manter em permanência durante os próximos anos esta área problema sob escrutínio. Existem algumas questões que vão exigir trabalho técnico aprofundado. É o problema da disponibilização e dos resultados da investigação anteriormente financiada. Entendemos que é indispensável clarificar este problema e vamos, portanto, encomendar que sejam analisados todos os trabalhos de investigação feitos e financiados por fundos públicos até agora, que seja verificado rapidamente o que é que foi produzido, o que é que não foi produzido. Não em qualquer sentido de inspecção ou de crítica a quem fez ou a quem não fez, mas pura e simplesmente para que a base de trabalho para trabalhos futuros possa ser disponibilizada e conhecida de todos. Para que os investigadores do sector, as empresas do sector possam saber com o que é que contam e não possam estar constantemente no escuro a tentar adivinhar como trabalhar nesta área. Vamos trabalhar abertamente com todas as empresas do sector: empresas nacionais e empresas estrangeiras. Não temos aqui qualquer preferência. Estamos abertos - e essa é uma declaração pública que queria transmitir-vos em nome do Estado - estamos abertos a receber propostas de qualquer empresa nacional ou estrangeira para trabalho de investigação e desenvolvimento em consórcio com investigadores nacionais ou instituições de investigação nacionais, no sentido de desenvolver produtos que sejam relevantes para o desenvolvimento da sociedade de informação em Portugal e para a defesa da língua portuguesa.

E por último, gostava de apelar para os mais novos, para aqueles que estão hoje nas mais variadas formações de base, que nalguns casos já têm a ver com esta mesma área, noutros têm a ver com áreas conexas, que fazem pós-graduações, no sentido de apelar para eles próprios para que tomem, nesta fase da sua formação, se tal for possível, que tomem atenção não só ao desenvolvimento de competências técnicas específicas que têm de adquirir, competências científicas que têm de adquirir, mas que participem no debate de política científica que vai, em última análise, condicionar e marcar e construir as instituições em que vão trabalhar no futuro. Muito obrigado.


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